O maior ícone da esquerda latino-americana surgiu em 9 de outubro de 1967, quando o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara foi assassinado na Bolívia. Quatro décadas depois (a serem completadas na próxima terça-feira), sua ambiguidade se torna mais evidente: ele é ao mesmo tempo “uma figura romântica, que sacrificou a própria vida aos ideais de justiça social”, e um mito “construído em suposições com pouquíssima relação com a realidade”, segundo o pensador peruano Alvaro Vargas Llosa.
“A realidade é que Che incorporou o pior na tradição da violência política na América Latina e acabou contribuindo para o subdesenvolvimento do continente”, afirmou Vargas Llosa, em entrevista exclusiva ao G1, por telefone.
Em vez de ser um herói, diz Llosa, o revolucionário se enquadraria no que chama de “perfeito idiota latino-americano”, personagem de dois de seus livros, que criticam a emergência de líderes populistas de esquerda no continente como responsáveis pelo subdesenvolvimento dos seus países.
Vargas Llosa reconhece, entretanto, que a morte pelo “sacrifício” é responsável pelo fortalecimento do mito de Che, 40 anos após sua morte — e o ponto em comum com Jesus Cristo, na avaliação do pensador peruano. “Ele foi morto lutando por aquilo em que acreditava. Isso é algo muito forte do ponto de vista moral, e fez com que ele se tornasse uma lenda.”
“A realidade é que Che incorporou o pior na tradição da violência política na América Latina e acabou contribuindo para o subdesenvolvimento do continente”, afirmou Vargas Llosa, em entrevista exclusiva ao G1, por telefone.
Em vez de ser um herói, diz Llosa, o revolucionário se enquadraria no que chama de “perfeito idiota latino-americano”, personagem de dois de seus livros, que criticam a emergência de líderes populistas de esquerda no continente como responsáveis pelo subdesenvolvimento dos seus países.
Vargas Llosa reconhece, entretanto, que a morte pelo “sacrifício” é responsável pelo fortalecimento do mito de Che, 40 anos após sua morte — e o ponto em comum com Jesus Cristo, na avaliação do pensador peruano. “Ele foi morto lutando por aquilo em que acreditava. Isso é algo muito forte do ponto de vista moral, e fez com que ele se tornasse uma lenda.”
Filho do escritor Mario Vargas Llosa, autor de clássicos da literatura latino-americana, o pensador dirige o Centro para a Prosperidade Global do Instituto Independent. Ele diz se considerar um liberal, em termos políticos.
Sua opinião sobre o legado de Che Guevara é bem diferente da do brasileiro Emir Sader, para quem os ideais de humanismo, solidariedade e rebeldia “atualizam a presença de Che”.
Autor do livro “O mito de Che Guevara” (não lançado no Brasil), Alvaro Vargas Llosa criticou ainda a nova esquerda latino-americana. Para ele, é o presidente venezuelano, Hugo Chávez, quem atualmente interpreta “o retorno do idiota”.
Leia abaixo a entrevista.
G1 – Há algo a ser celebrado pelos 40 anos da morte de Che?
Alvaro Vargas Llosa – Não há motivo para comemorar nada. O mito de Che Guevara é construído em várias presunções e suposições com pouquíssima relação com a realidade. Ele é visto, especialmente pelos jovens, como uma figura romântica, que morreu por seus ideais, vítima de um governo autoritário, que devotou sua vida à luta por justiça social.
A realidade é que ele incorporou o pior na tradição da violência política na América Latina e acabou contribuindo para o subdesenvolvimento do continente, tanto em termos políticos quanto econômicos. Até mesmo sua contribuição na Revolução Cubana foi desastrosa, já que ele era responsável pelo Banco Central e depois pelo ministério da Indústria e, em ambos os casos, ajudou a destruir uma economia que, na época, era a terceira maior da América Latina.
G1 – Ele é visto politicamente ora como um libertador do continente, ora como um assassino. Existe embasamento para assumir alguma dessas visões?
Vargas Llosa – A afirmação de ele ser um assassino não é uma questão de opinião, mas de fato. Tanto antes da Revolução, em Sierra Maestra, quanto após a conquista de Cuba, Che Guevara participou pessoalmente de várias execuções, e isso está muito bem documentado. Particularmente, apontaria a época em que ele era chefe da fortaleza de La Cabaña, usada como prisão, em Havana. Ele foi responsável por esta prisão por seis meses em 1959, e neste período aconteceu a maior parte das execuções em Cuba. Ele era o presidente da banca judicial que fazia as decisões finais sobre as execuções. Estou falando em centenas de mortes, muito bem documentadas e com a participação dele.
Isso não é algo que ele negasse. Pelo contrário, ele defendia essas ações com o argumento de que a justiça revolucionária deveria seguir um código draconiano, drástico, como única forma de eliminar a possibilidade de contra-revolução. Ele se orgulhava de participar do que chamava de “limpeza” de Cuba. Não há questão de que ele estava envolvido em execuções por motivos políticos, o que só pode ser considerado assassinato.
G1 – O principal biógrafo dele, Jon Lee Anderson, defende essas ações como atos de guerra. O sr. concorda?
Vargas Llosa – Se aceitarmos este argumento, vamos ter que aceitar que as vítimas de Pinochet também foram vítimas de guerra. O argumento da guerra serve para legitimar a violência da ditadura argentina, quando cerca de 30 mil pessoas desapareceram. Não sei de nenhuma ditadura, de direita ou de esquerda, que não tenha usado o argumento de estar em guerra como desculpa para eliminar seus inimigos políticos.
G1 – Há algum elemento de heroísmo na luta de Che Guevara?
Vargas Llosa – Não. Vejamos: o país que ele teoricamente libertou, Cuba, é um dos mais subdesenvolvidos da América Latina. Cerca de 11 milhões de pessoas vivem atualmente na ilha em condições que só podem ser descritas como muito injustas, do ponto de vista econômico e social, comparado com a população do Chile, que é um país democrático no qual a pobreza foi reduzida a 14%.
Se quisermos considerar alguém um herói libertador, precisamos mostrar resultados políticos, econômicos e sociais. O país que Guevara “libertou” está numa das piores situações do continente, enquanto, na época da “libertação”, tinha a terceira maior economia da América Latina. Não era um país rico ou desenvolvido, mas tinha uma economia maior que a dos outros países do continente, e hoje só está melhor que o Haiti.
G1 – Fidel Castro não é mais visto como herói, como Che Guevara é. A morte dele, 40 anos atrás, tem relação com este mito sobre ele?
Vargas Llosa – Sem dúvida. Precisamos admitir, independentemente de qualquer crítica, que ele foi morto lutando por aquilo em que acreditava. Em vez de se acomodar no que havia conquistado e deixar de correr risco, ele continuou lutando pela revolução e acabou morrendo por ela. Isso é algo que é muito forte do ponto de vista moral e icônico, fazendo com que ele se torne uma lenda, com uma imagem relacionada à de Cristo, pelo sacrifício. Se não fosse por esta morte pelo sacrifício, ele seria visto hoje como uma figura envelhecida que contribuiu para a instalação de uma ditadura que existe há meio século, como Fidel.
G1 – Como podemos relacionar o mito de Che Guevara com o seu trabalho sobre o “perfeito idiota latino-americano”?
Vargas Llosa – Che contribuiu para todas as ideias e ações que mantiveram a América Latina uma região pobre em comparação com outras regiões em desenvolvimento do mundo, como o sul e o leste da Europa, a Oceania e o próprio leste da Ásia, que 40 anos atrás era, juntamente com a África, uma das regiões mais pobres do mundo. A ideia de violência política como ferramenta legitima de justiça; a ideia de que a riqueza deveria ser redistribuída dos ricos para os pobres em vez de criada; a ideia do Estado como instrumento de justiça social; a ideia de nacionalismo e de cortar laços com as potências para promover a indústria local. Todas essas ideias falharam completamente, e que estão o cerne da incapacidade da América Latina em se tornar uma das regiões mais desenvolvidas do mundo. Por isso ele contribuiu para a “idiotice” na América Latina.
G1 – Mas ele não criou esse personagem, o “perfeito idiota”?
Vargas Llosa – Não, começou muito antes, e por isso chamamos de “idiotice”. O que chamo de “idiotice” não é o ato de cometer erros, mas o ato de cometer os mesmos erros do passado várias vezes.
Quando Che Guevara teve a chance de fazer o que fez, nos anos 60, a América Latina já tinha evidência do que funcionava e do que não funcionava politicamente, já que muitas daquelas ideias já haviam sido implementadas bem antes. O que aconteceu em seu próprio país, a Argentina, sob Perón, poderia facilmente servir como exemplo de que o que ele queria levar para Cuba já havia falhado. Se ele tivesse integridade intelectual, veria que o que Perón fez tinha muitas das ideias do que Guevara quis implementar em Cuba, e já havia dado errado. Por isso digo que ele é um dos “perfeitos idiotas”. Não porque ele tenha errado, mas porque repetiu erros que já haviam sido demonstrados no continente.
G1 – E o que pode exemplificar o que o sr. chama do “retorno do idiota”?
Vargas Llosa – As políticas que Hugo Chávez está implementando na Venezuela, naturalmente, seguem a cartilha do “perfeito idiota latino-americano”.
G1 – Podemos dizer que Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Corrêa, no Equador, também seguem este caminho?
Vargas Llosa – Nas questões mais essenciais, podemos dizer que eles estão começando a seguir, mas há diferenças muito claras entre eles. Morales não estabeleceu um governo autoritário na Bolívia, e ainda há muita oposição, um sistema democrático, enquanto o que Chávez tem na Venezuela já deixou a democracia de lado e se encaminha para uma ditadura. O Equador está ainda mais longe, mas parece querer seguir o mesmo caminho. A principal diferença é que o que vemos na Venezuela provavelmente é irreversível, enquanto a história ainda não se completou na Bolívia e no Equador.
G1 – Se analisarmos o exemplo de Chávez, ele realmente acredita no que está implementando, ou apenas finge seguir essa cartilha por seu apelo populista?
Vargas Llosa – É muito oportunista e calculista da parte dele. Chávez sabe bem que na Venezuela, onde 50% da população vive em situação de pobreza, e por 40 anos as classes altas governaram de forma corrupta, este modelo tem forte apelo da população. O fato de ele acreditar ou não é irrelevante, a questão é que ele está trilhando o caminho do “idiota”.
Ele tem plena noção de que está criando uma situação política irreversível. Sabe que a concentração de poder por ideais populistas pode dar a ele um tipo de poder sobre as instituições que outro sistema não permitiria. Se ele quisesse estabelecer uma ditadura capitalista, não conseguiria. As únicas ditaduras capitalistas são as que se estabelecem pela força militar ou as que mudam de sistema após sua instalação. O sistema capitalista é, por definição, mais descentralizador, e dificultaria seu controle total sobre o país.
G1 – A força do que o sr. chama de “idiota latino-americano” vai mudar de alguma forma quando Fidel Castro morrer?
Vargas Llosa – Não muito. Estes países de que falamos não dependem mais de Fidel, ou da realidade cubana, mas apenas do mito de Cuba. Este mito vai sobreviver após a morte de Fidel.
G1 – Qual a situação do Brasil nesse contexto?
Vargas Llosa – O Brasil é o modelo anti-Chávez, por mais que mantenha relações cordiais com o venezuelano. O Brasil está criando um paradigma oposto a este perfil “idiota”. Os primeiros anos do governo Lula, com pouco crescimento, o Brasil estava um pouco perdido, mas o aumento no crescimento econômico está fazendo com que o Brasil sirva como exemplo de sucesso, muito mais de que a Venezuela, para ser seguido pela América Latina.
Chávez ainda tem influência sobre países como Peru, Bolívia e até o México, mas o modelo de centro-esquerda do Chile, do Uruguai e do Brasil é maioria no continente.
Fonte: G1, 7 de outubro de 2007.
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