Por Michelle Moretzsohn Holperin e Lucia Helena Salgado
Um exemplo pitoresco sempre a ilustrar aulas de economia da tributação é o imposto sobre janelas que vigorou no Reino Unido por um longo período — de 1696 a 1851. Idealizado originalmente como instrumento equânime — por progressivo — para aumentar a tributação em um país com os cofres públicos esvaziados pela Guerra dos 100 Anos, perpetuou-se por inércia, a par das distorções que gerou, apontadas pelos contemporâneos.
A lógica do imposto parecia correta, cobrar de quem podia pagar, em base progressiva: as faixas de alíquota variavam pelo número de janelas nas residências, 10, 15 ou 20, sendo o número de janelas proxy da riqueza do proprietário. Tarefa fácil para o Tesoureiro do Reino calcular o aporte de recursos aos cofres públicos, bastando ter um bom levantamento das construções urbanas, certo? Errado. O efeito imediato da instituição do novo imposto foi a vedação de um grande número de janelas no Reino, fato que se observa ainda hoje – em Edimburgo é possível ainda ver inúmeros prédios com fileiras inteiras de janelas vedadas por antigos tijolos.
Uma recente análise rigorosa do conhecido fato (Oates and Schwab, 2015) desvenda detalhes sobre as distorções criadas pelo imposto: as decisões sobre construções passaram a levar em conta a incidência do imposto, observando-se picos de frequência em casas com 9, 14 e 19 janelas – justamente na margem da elevação de alíquotas. O fechamento de janelas por proprietários — causa do agravamento de doenças respiratórias e proliferação de doenças, segundo relatos contemporâneos — acabou afetando especialmente a população mais pobre, locatária, espremida em casas sem janelas. O aumento de arrecadação foi, portanto, ao menos parcialmente neutralizado pela reação dos contribuintes. Adam Smith só viria a se dedicar a desvendar os mecanismos dos incentivos econômicos e propor normas de tributação eficiente quase um século depois. A má política — com seus efeitos danosos e não antecipados sobre os mais frágeis — ficou registrada por Charles Dickens na revista que editava, Household Words.
Seria de se esperar que no século XXI decisões de política tributária fossem tomadas após a avaliação de impactos, informada por análise econômica com base em evidências. Mas não, continua-se a cometer erros semelhantes àqueles de quatro séculos atrás. Premidos pela queda de arrecadação e déficits em contas públicas, vários governos estaduais elevaram a alíquota de ICMS sobre cigarros em 2015 e 2016, a despeito aumento do IPI em 14%, que passou a vigorar esse ano. De certo, produtos derivados do tabaco e álcool são os primeiros candidatos chamados a colaborar com o esforço fiscal, considerando a baixa sensibilidade de sua demanda a variações de preço e associado que está seu consumo à geração de externalidades negativas. O erro, porém, está em se desprezar a necessidade de análise mais rigorosa dos efeitos do aumento tributário.
O Nobel de Economia Joseph Stiglitz, em sua obra sobre Economia do Setor Público ensina que a incidência do ônus tributário depende da organização dos mercados (grau de concorrência), da resposta da demanda e da oferta a aumento de preços (do formato das respectivas curvas, que indicam a sensibilidade de produtores e consumidores a mudanças em preços). Impostos sempre irão gerar impacto sobre o consumo — lembra Stiglitz que o objetivo de todo imposto é transferir poder de compra dos indivíduos para o governo. A questão é se o impacto é o esperado — aumento da arrecadação e diminuição do consumo — ou se efeitos não antecipados serão gerados.
Nos últimos quatro anos, houve seguidos aumentos da alíquota do IPI incidente sobre cigarros: 110% em média e 140% para as marcas de menor preço. A parcela de tributos no preço final do produto pode superar os 80%.
Ao mesmo tempo, dados recentes de um amplo estudo conduzido pelo IDESF mostram que o cigarro corresponde por cerca de 68% do total de produtos que entram ilegalmente no Brasil. Esse mercado ilegal, que possui uma rentabilidade mínima de cerca de 180%, resulta em perdas da ordem de 6,4 bilhões de reais, sendo 4,5 bilhões relacionados a perda de arrecadação somente. Teríamos ultrapassado o ponto a partir do qual aumento de alíquota correlaciona-se negativamente com arrecadação?
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A teoria econômica, testada em estudos empíricos nos diz que há limites para aumentos de impostos. Como no caso do imposto sobre janelas, os agentes econômicos ajustam suas decisões de modo a evitar transferir ainda mais poder de compra para o governo. As alternativas que os agentes dispõem dependem do ambiente institucional em que se encontram. No ambiente institucional brasileiro, de baixa eficácia no combate ao contrabando de cigarros, convivem dois mercados: o legal e o ilegal. Um sujeito às normas do Estado — regulação e tributação — o outro não.
Para o consumidor significa ter diante de si a escolha entre produtos caros e baratos (o diferencial de preços nos dois mercados é superior a 100%). As escolhas feitas pelos consumidores de certo variam também em função das características dos consumidores — faixa etária, grau de escolaridade, nível de renda. O que chama a atenção — e deveria provocar a reflexão dos decisores públicos — é que há fortes razões para crer que o aumento continuado de impostos esteja provocando, não a redução de consumo e aumento de arrecadação esperados, mas desvio de demanda para o mercado ilegal, estimulando sua expansão, e perda de arrecadação — diretamente relacionada à redução de vendas no mercado formal.
O imposto sobre janelas acabou por ser revogado. A compreensão sobre os efeitos nefastos e seu fraco desempenho arrecadatório — um cálculo pragmático de custos e benefícios — impôs-se a seu tempo. Aqui em nosso estado, fato semelhante se observou num passado não muito distante, quando, em 1998, o governo revogou o aumento de 25% para 35% do ICMS sobre cigarros, depois de ver a arrecadação despencar 43%.
No entanto, o aprendizado parece ter sido esquecido. Há poucos dias, uma nova alta, aprovada de forma confusa e sem nenhuma análise e estudo de impacto na Alerj, elevou a carga tributária do produto para, aproximadamente, 37%. Anunciada como parte da solução para a crise financeira do estado, a medida indica que continuamos a repetir velhos erros em política tributária e assim continuará sendo enquanto decisões públicas não forem sujeitas à prévia análise de seus efeitos.
Fonte: ConJur, 21/12/2016
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