Ao decidir pelo recolhimento de um livro que continha um conto considerado “inadequado” para crianças de 7 anos de idade, o Ministério da Educação (MEC) se expõe a três grandes críticas: exercício de censura, conhecimento duvidoso sobre a função pedagógica dos contos tradicionais e suspeita a respeito do real valor dos diplomas de professor que o órgão valida.
O MEC alega que não fez censura, apenas descobriu, após a denúncia de alguns pais, que o texto, por tratar de incesto, seria inadequado para crianças de 7 anos. Não se discute aqui o mérito da obra – mesmo porque se trata de ficção popular, não literária. Mas o tema – um dos poucos tabus ainda remanescentes em nosso mundo pós-moderno – em pouco difere das violências nada sutis que caracterizam esse gênero: crianças abandonadas pelos pais, bruxas que transformam arbitrariamente sapos em príncipes e príncipes em sapos, pretendentes à princesa que são decapitados sumariamente se não acertarem as adivinhas do rei. E é muito menos pernicioso do que assistir às incestuosas relações que se desenrolam aos nossos olhos nas antecâmaras do poder envolvendo os setores público e privado e, aparentemente, os próprios Poderes entre si.
A justificativa para recolher os livros baseou-se em pareceres internos do próprio Ministério da Educação – não houve debate com especialistas. Esse parecer revela desconhecimento da psicologia infantil e da função pedagógica dos contos populares. Crianças em todo o mundo tipicamente se maravilham por esse gênero entre os 3 e os 6 anos de idade – pelo menos desde Rudolf Steiner isso está bem estabelecido. Aqui reside a essência da questão, e convém aprofundar. Sejam os adeptos das interpretações psicanalíticas de Bruno Bettelheim, sejam os que acompanham os estudos de pesquisadores como Maria Tatar, condenar essa obra como inadequada em razão da idade das crianças é condenar todos os contos populares. Estes constituem um importante instrumento de amadurecimento emocional e cognitivo das crianças – especialmente entre os 3 e os 6 anos de idade, faixa etária em que seus critérios de decisão operam no branco e preto e suas certezas são maiores do que suas dúvidas.
A estrutura começa com o “era uma vez” abrindo espaço para imaginar e fugir do real. Os personagens são simples, consistentes e predizíveis, desempenham papéis sociais conhecidos, são estereotipados e não têm identidade pessoal. O enredo é tipicamente denso e violento e oferece oportunidades únicas para ajudar as crianças a refletir sobre temas universais como o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto. O final, quase sempre feliz, reflete a aspiração de que um dia a justiça será feita.
Já o final infeliz reflete o princípio da realidade e pode causar tristeza ou indignação, mas não chega a causar surpresa à maioria das crianças. A transformação de princesa em bruxa ou em criada, ou do sapo em príncipe e vice-versa, reflete a arbitrariedade da nossa condição. Mas basta uma varinha mágica para reverter a ordem estabelecida. O medo, o terror, a arbitrariedade que antecedem a resolução do conflito ajudam a criança a sentir na pele e refletir sobre sua própria realidade – povoada de gigantes que tolhem a sua liberdade e impedem o exercício de sua curiosidade ilimitada e, na sua perspectiva, agem quase sempre de maneira arbitrária. Como agora o faz o MEC.
Cabe à família e à escola ensinar as crianças a lidar com o mundo como ele é – evitando, quando possível, que a criança sofra danos nesse processo. O maior antídoto contra a violência é enfrentá-la, ainda que com a ajuda da literatura. Mas se o MEC tiver razão, cabe a ele sustentar, com argumentos sólidos e num debate público com professores experientes e estudiosos do ramo, a idade para a qual o livro ora censurado seria recomendável.
Resta examinar a pergunta que não consegue calar: o Ministério da Educação desconfia que os professores não são capazes nem de escolher livros – por isso ele os escolhe – nem de calibrar a sua dosagem e interpretação? A suspeita possivelmente é fundada, mas se for confirmada o rei fica nu. Ou o MEC assume que os professores são competentes e delega a eles decisões pedagógicas importantes, ou, então, reconhece que não o são, que precisam ser tutelados e que os diplomas que ele valida são questionáveis.
Diante de tal situação, existem três saídas, sendo as duas primeiras inviáveis na prática. Uma delas consistiria em reconvocar os professores para recomeçar do zero uma formação adequada, a outra seria substituir os que não estiverem à altura do desafio e a terceira consistiria em assumir as deficiências como parte da realidade e usar estratégias comprovadamente eficazes para lidar com esse tipo de situação.
Voltamos, assim, ao ponto de partida. A censura se deu porque o MEC inventou um programa que não precisaria existir, mas que, ao existir, envolveu a escolha centralizada de leituras e, assim, colocou o Ministério na posição de censor. O problema, portanto, ocorreu porque, no lugar de promover políticas públicas que assegurem a melhoria da educação, o MEC opta por se envolver em ações emergenciais – projetos de curto fôlego e impacto zero. O próprio ministro Mendonça Filho reconheceu isso no início de sua gestão. Portanto, a causa maior do problema reside no próprio Ministério da Educação e na sua forma de entender o seu papel.
Mas ninguém tem coragem de reconhecer esses fatos e dar nome aos bois. Em vez de intervir no varejo e exercitar o poder de tutela, não seria mais interessante para o país que o governo central se concentrasse em estabelecer políticas que garantissem escolas e professores que possam atuar com autonomia em suas decisões pedagógicas?
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 20/06/2017.
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