Aumentar o papel da política em nossas vidas é sempre bom?
Algumas divergências políticas se dão sobre meios: concordamos, por exemplo, que mais renda na mão dos pobres é uma coisa boa, mas discordamos da maneira de atingir esse fim. Em tese, um bom argumento técnico ou científico pode solucionar essa questão. Quando o assunto é organização política, contudo, começamos a tocar o campo dos fins. Qual é o tipo de sociedade que queremos ter? Uma dessas divergências está no valor dado à democracia e ao papel da política em nossas vidas, questão central em um país em que a maioria não se vê representada pelo sistema.
Para um lado — podemos chamar de “direita liberal” — a democracia é um elemento importante para garantir que o governo esteja sujeito à opinião pública. Tem limitações e ineficiências, mas é o melhor que temos para garantir o objetivo final: a soberania do indivíduo.
Para o outro lado — podemos chamar de “esquerda progressista” — a democracia é um valor enquanto tal: é a soberania do povo ao determinar os rumos da sociedade. O poder da coletividade deve ser sempre expandido. Ela aposta num cidadão que participa sempre mais desse processo, que vive e respira a política de sua comunidade, de preferência de forma direta.
Mas será que aumentar o papel da política em nossas vidas é sempre bom? Se você mora em um apartamento, você já experimenta as maravilhas da democracia direta: a reunião de condomínio. Nenhum prédio pode viver sem ela; há questões que dizem respeito a todos (fazer ou não um piscina nova?), e é melhor ter algum poder de interferir nisso do que ficar à mercê de um autocrata.
Agora imagine que o condomínio delibere não só sobre a área comum, mas sobre o interior dos apartamentos: a cor da parede, os móveis, quem pode te visitar, seu modelo de carro, que horas você chega; tudo determinado pela maioria em assembleia. A sua vida está nas mãos de vizinhos que não necessariamente gostam de você nem partilham dos seus valores. Alguns desses, com mais tempo livre e mais gosto em bisbilhotar e interferir na vida alheia, vivem de propor novas regras e articular maiorias para eliminar tudo que os desagrade. Sua única defesa é se dedicar cada vez mais a esse jogo, com cada vez menos espaço para trabalho, lazer, amigos etc.
Agora pense esse processo em escala social. Milhões de pessoas eternamente discutindo sobre tudo, fazendo campanha e militância constantes. Nada está garantido, pois tudo é parte da esfera coletiva. A vida em sociedade torna-se uma eterna e ininterrupta reunião de condomínio. Utopia ou visão do inferno?
Escolha coletiva envolve, necessariamente, conflito. É para limitar a abrangência do conflito em nossas vidas que temos leis e direitos individuais. Ao invés de jogar tudo na política, garantimos uma de esfera de decisão individual. Interagindo e negociando individualmente, criamos diferentes opções de relacionamento e produção, que são por sua vez testadas o tempo inteiro. Assim, estamos a salvo tanto do arbítrio de um tirano quanto da tirania da maioria. É a opção liberal.
Mais política nem sempre é bem-vinda. Para aquilo que é irredutivelmente comum, a democracia é o melhor que temos. De resto, quanto mais pudermos privatizar as decisões, melhor podemos viver. A política é essencial para a sociedade. Igualmente importante é que nem tudo seja política. Ela não pode nos salvar.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 27/06/2017.
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