Numa redação escolar escrita aos 17 anos, sob o título “Reflexões de um jovem a respeito da escolha de uma profissão”, um excelente aluno de um colégio de Trier, na Alemanha, com um talento invejável para matemática, escreveu o seguinte: “As profissões que não estão envolvidas na vida em si, mas preocupadas com verdades abstratas, são as mais perigosas para o jovem cujos princípios ainda não estão firmes e cujas convicções ainda não são fortes e inabaláveis”. Escritas em 1835, tais palavras teriam na certa caído no esquecimento, não fosse a celebridade futura de seu autor. Foram destacadas num perfil dele escrito mais de um século depois pelo crítico americano Edmund Wilson, para comprovar como, desde cedo, aquele jovem prestava atenção “para evitar cair na mais perigosa de todas as tentações: o fascínio do pensamento abstrato”. Pois, no fim da vida, ele não resistiu: rendido à armadilha sedutora da abstração, produziu manuscritos e mais manuscritos sobre cálculo avançado. Ficou mais conhecido, claro, pelas teorias econômicas que, transformadas em culto religioso, deram origem a tanto atraso, a tanta pobreza e a tantas tragédias — para não falar nos genocídios. O nome do jovem era Karl Marx.
A relação de Marx com a matemática, seu fascínio com o pensamento abstrato deveriam servir de alerta a economistas, cientistas e acadêmicos. Ao longo das últimas décadas, o formalismo — talvez melhor fosse dizer “formulismo” — tomou conta da produção intelectual em várias áreas. Embriagados pela própria teoria, economistas de todos os matizes recaem na armadilha de Marx. Dois anos atrás, quando decidiu abandonar a academia, Paul Romer, hoje no Banco Mundial, causou furor com um artigo em que acusava seus colegas de disfarçar a política de ciência, sob o véu de modelos e fórmulas tão impenetráveis quanto facilmente manipuláveis. “Nada como uma página repleta de símbolos, equações e teoremas para provocar a admiração e o sentimento de estar diante de uma autoridade”, escreve o economista André Lara Resende no último ensaio do recém-lançado “Juros, moeda e ortodoxia”. “O verdadeiro problema da formalização matemática é tornar a matéria impermeável à crítica externa. Inacessível aos não iniciados, toda crítica externa fica irremediavelmente comprometida.”
No livro, Lara Resende reúne seis ensaios, entre eles os artigos que tanta balbúrdia geraram no início do ano, ao contestar os preceitos adotados no combate à inflação por todos os banqueiros centrais bem-sucedidos do planeta. Com base em trabalhos do americano John Cochrane, da Universidade Stanford, Lara Resende defende uma visão contrária ao senso comum. Por mais que a alta do juro possa conter a inflação temporariamente, diz Cochrane, na verdade contribui para elevá-la no longo prazo. Para detê-la, o essencial não é a política monetária, mas a política fiscal. Os preços saem do controle quando o mercado desconfia da capacidade do governo em honrar suas dívidas e compromissos. Não se trata, portanto, de uma apologia ingênua das políticas heterodoxas que desprezam a relação entre gastos públicos e surtos inflacionários — mas de uma hipótese, conservadora do ponto de vista fiscal, para explicar alguns efeitos intrigantes da crise financeira de 2008. Há, por ora, um debate acadêmico febril sobre o assunto, sem que dele tenha sido possível extrair conclusões definitivas ou recomendações práticas.
Ao chamar a atenção para a questão, Lara Resende quer contrastar a incerteza inerente à ciência econômica com a prepotência daqueles que afirmam dominá-la — ou dependem dela. Seu alvo são os banqueiros centrais, indiferentes à “percepção dos empresários e homens práticos”, para quem juros altos sempre foram causa de inflação. Só que nem as teorias de Cochrane nem sua adaptação para o Brasil caem no vazio. Os tais “homens práticos” aproveitaram a controvérsia acadêmica. Sem dar a mínima para as sutilezas da verdade científica, saíram até mesmo em defesa da política monetária irresponsável do governo Dilma Rousseff — quando nada do que Cochrane ou Lara Resende tenham dito autorizaria isso. Economistas sérios também reagiram aos artigos publicados por Lara Resende com críticas precisas que, infelizmente, ficaram sem resposta no livro. Por fim, as teorias de Cochrane não deixam de vir embaladas no mais sofisticado “formulismo” — é dificílimo compreendê-las sem matemática (tento fazer isso no texto “Juros, inflação e disciplina fiscal”, publicado em fevereiro no meu blog do portal G1). Elas podem exercer, portanto, o mesmíssimo “fascínio do pensamento abstrato”, que já assombrava Marx na adolescência. Uma abstração perigosa que nos desconecta da realidade pode se travestir de fórmula matemática — mas também de narrativa sedutora.
Fonte: “Época”, 2/07/2017.
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