Vocês podem não acreditar, mas foi Dunga — sim, o técnico da Seleção Brasileira — quem me despertou para o que segue, o que me leva, de saída, a uma espécie de sentença moral: o importante não é o Dunga que lhe deram, mas o que você faz com ele. Adiante. O “meu” Dunga começa me levando a Stendhal.
Quem vive de escrever — é o meu caso, o que não deixa de ser um privilégio conquistado — está sempre, tenha clareza disto ou não, em busca do evento excepcional, extraordinário, que o mobilize para o tal “fato histórico”. No mais das vezes, o dito-cujo só se revela muito tempo depois. E a gente é obrigado a se contentar com pequenezas. Em A Cartuxa de Parma, Stendhal conta as peripécias de Fábrício Del Dongo, que vive a Batalha de Waterloo sem se dar conta da grandeza épica daqueles dias. Trata-se de um romance difícil e formidável, um dos melhores de todos os tempos.
Se querem saber como um autor pode traduzir a complexidade da história por meio de dramas pessoais e sem esquematismos, você lerá um dia A Cartuxa de Parma — e só se der tempo, mas pode ir para o fim da fila, O Memorial do Convento (não resisto a uma provocação…). A gente não é Fabrício. Que lugar reservará a história a estes dias? Vai saber. Sei é que a teia está sendo tecida. Não creio que uma batalha de Waterloo se trave à nossa volta, mas estou certo de que alguns eventos podem ser lidos como pulsações de uma espécie de organismo em gestação. E Dunga vai começar a ser devolvido à minha história.
Não saber perder é uma reação relativamente comum e, convenham, até compreensível. Há várias maneiras erradas de passar por isso, e, talvez, não haja uma só que possa ser considerada correta. Se o sujeito é frio e educado, dirão que está disfarçando a contrariedade; se dá murro na mesa, que é um histérico; se silencia, que está humilhado. Embora não exista história sem derrotados — e, portanto, eles fazem avançar o mundo tanto quanto os vitoriosos —, o discurso da derrota é uma fala sem lugar.
A menos que estejamos no seio de um daqueles movimentos de reparação do oprimido e de culpabilização do opressor. Mas, convenham, também nesse caso, o que se busca é marginalizar o vitorioso, que passa a ser, então, um derrotado PELA história. Homero, o grande Homero, era uma exceção. Impossível ler A Ilíada sem simpatizar com o caráter de Heitor. Levei essa simpatia para a família: convenci minha irmã e meu cunhado, já lá se vão bons anos, a batizar um dos meus sobrinhos com o nome do herói troiano.
Já o repertório da vitória é bem mais amplo e tendemos, naturalmente, a ser mais condescendente com as suas múltiplas manifestações. Ao ver Luís Fabiano a fazer praça das duas vezes em que meteu o braço na Jabulani para fazer seu gol de placa, acusar a ilegalidade do tento confunde-se com uma espécie de mesquinharia, de inapetência para a celebração. Afinal, ele é tão todo-dentes, tão “brasileiro” no seu jeito moleque de driblar a regra que só resta como corolário moral a máxima de que “aquilo que os olhos do juiz não vêem (se bem que ele viu e achou engraçado…), o placar não marca”. E dane-se! Os vitoriosos podem ser terrivelmente simpáticos e errados, e essa nem é a sua pior face.
A pior mesmo é a de Dunga, o Irado. Ontem, na entrevista coletiva, mais uma vez, o técnico da Seleção se indispôs com os repórteres, em particular com um jornalista da Globo. Disse impropérios, palavrões, fulminou com olhares, como se a imprensa atrapalhasse relações privadas, que não dizem respeito ao público. Ocorre que dizem. Não fosse o jornalismo que ele repudia e o aparelho midiático — que envolve negócios bilionários, de que ele é um milionário beneficiário —, a Copa da Fifa não mobilizaria o mundo, o Brasil em particular, já que este segue sendo “o país do futebol” etc e tal. Sua reação foi estúpida, injustificada e malcriada. Ainda que estupidez fosse diretamente proporcional a talento e brilho, faltaria a Dunga mostrar muito futebol. Não obstante, ele tem uma trajetória, até aqui, que pode ser considerada vitoriosa — e ele é tratado pela chamada “mídia” brasileira como um… vitorioso! De onde vem tanto ódio, tanto rancor, tanta braveza?
Além de nossos dramas e de nossas lendas pessoais, somos também personagens de uma história cujos fios não dominamos — a rigor, ninguém domina; talvez as Parcas… Como Fabrício, nossas existências privadas nos impedem de ver com clareza todas as implicações de nossos atos e os fatos antecedentes. Somos sempre os piores narradores de nós mesmos. Não raro, quando nos olhamos no espelho, é como se buscássemos “o autor”. Tentamos atribuir àquele “outro” que vemos um senso estratégico que sabemos não ter. Com Dunga, não é diferente. Sim, ele pode “entrar para a história” como o grosso malcriado que trouxe o “Hexa” para o Brasil. Mas ele não é senhor absoluto de seu comportamento destrambelhado. Ele também é fruto de uma cultura que está em curso e que está sendo estimulada. Pelo poder.
Dunga, no que diz respeito à imprensa, observei isto outro dia aqui, é o Lula do futebol — até na suposição de que os “estrangeiros” vêem a sua obra com olhos mais generosos do que os nativos, como se isso, de resto, não fosse natural. Num país democrático, a imprensa nativa tende mesmo a ser mais crítica com o seu próprio governo ou com sua própria Seleção do que a de fora. A razão é simples: dispõe de mais informações e está mais comprometida com os fatos, por mais isenta que seja. Não há nada de anormal nisso. A tarefa dos jornalistas, em qualquer área, não é se comportar como torcida.
Só que é crescente a intolerância com a crítica. De precondição e apanágio da democracia, ela passa a ser tratada como uma espécie de sabotagem e de confronto de agendas. Lula e a Secom de Franklin Martins estão convencidos, o que é uma mentira estúpida, que a popularidade do governo é uma derrota para a grande imprensa. Pistoleiros a soldo são financiados pelo poder, inclusive por estatais, para alimentar uma rede de difamação da imprensa. Ao apontar as falcatruas deste ou daquele, ao apontar desmandos, ao denunciar maracutaias (para lembrar palavra que Lula introduziu no repertório político brasileiro), ela não estaria, de modo nenhum, interessada no bem do país ou da política. Ao contrário: seria manifestação de seu golpismo. Assim como é a imprensa a principal responsável pelo “fenômeno de mobilização” que é a Copa do Mundo, ela responde em grande parte por “Lula, o presidente”, ter-se transformado em “Lula, o Magnífico”. O técnico da Seleção e o técnico do país cospem no prato em que aimentam a sua fama.
É evidente que nem um nem outra se opõem às boas notícias sobre seus respectivos times. Eles se incomodam é com as más ou com aquilo que não consideram um elogio. Para eles, a vitória só se consolida com o silêncio da crítica. Na prática, estimulam a intolerância e a satanização da divergência. Lula trata os críticos como inimigos do Brasil. Dunga trata os críticos como inimigos da Seleção. Uma simples indagação dispara um mecanismo de defesa agressivo, que desqualifica o interlocutor.
O esforço permanente desses lugares de poder é para enfraquecer a imprensa como um dos instrumentos de mediação da sociedade democrática. Essa é a narrativa que interessa, não os chiliques particulares de Lula ou de Dunga. Esse é o fato histórico, creio, que precisa ser apreendido. Esse é o tempo interessante que precisa ser caracterizado. O avanço espantoso da tecnologia de informação nos tornou a todos, hoje em dia, produtores e repassadores de informação, sem distinção.
Essa diversidade tem seu aspecto virtuoso, sem dúvida. Mas também está sendo habilmente manipulada pelos inimigos da liberdade, que alimentam a cadeia do rancor, transformando a pistolagem industriada, sustentada com dinheiro público, num simulacro de movimento popular ou de movimento social. A imprensa até agora não conseguiu reagir adequadamente e se deixa, às vezes, na melhor das hipóteses, intimidar; na pior, as ditas “redes sociais” se tornam agentes da patrulha do poder.
Atenção! Dunga, o bocudo, não está mancomunado com Lula. Ele já é fruto desse clima do pega-pra-capar, do poder que acredita que não tem de dar satisfações; do ambiente em que o debate e a divergência atrapalham; do elogio da intolerância.
Curiosamente, nunca foram tão diversos os meios de produção e reprodução da notícia; não obstante, o clima raramente foi tão hostil à liberdade de crítica, que é a única liberdade possível. Já que, diante do poder, ninguém precisa ser livre para elogiar. Isso também pode ser feito pelas mentes cativas.
Dunga, Lula etc… Essa gente passa. Eu me interesso é pela narrativa de que eles são meras personagens.
(Publicado no blog de Reinaldo Azevedo)
Entrei para ler algo interessante e, que decepção! Que texto idiota! Além de vazio de conteúdo, bem contraditório, o autor é indigente no estilo e tenta brandir uma erudição que visivelmente não tem. Como dizia o finado Bussunda: “É para gente burra se sentir inteligente”
“Como dizia o finado Bussunda: “É para gente burra se sentir inteligente”” O autor do comentário não deixa dúvidas, burrinho que só, não contrapõe nada do que diz o artido, só repete uma frase feita, de um autor (inteligente) que endossaria o artigo – tem como par Marcelo Madureira articulista neste mesmo site e já foi capa da Primeira Leitura do mesmo Reinaldo Azevedo.