Faz 100 anos que os bolcheviques, liderados por Vladimir Lênin, depuseram o governo provisório de Alexander Kerensky na então Petrogrado (São Petersburgo) e tomaram o poder na Rússia. Naquele 7 de novembro de 1917 – 25 de outubro, no calendário juliano usado na época –, Leon Trotsky enxotou os adversários na abertura do Segundo Congresso dos Sovietes com uma frase profética: “Vão para o lugar de vocês agora, a lixeira da história!”. A história não reservou um lugar muito melhor ao próprio Trotsky, forçado dez anos depois a um exílio amargo, depois assassinado. Nem a Lênin ou Stálin, artífices do totalitarismo soviético, que matou dezenas de milhões. Por 100 anos, a Revolução Russa tem sido objeto de um sem-número de relatos, análises e interpretações. O centenário ressuscitou o alerta vermelho para o risco do comunismo.
As obras sobre o legado de 1917 padecem de dois tipos de deficiência. Quem estava presente transmite a vivacidade dos eventos, mas acaba comprometido pela parcialidade e pela simpatia aos revolucionários. É o caso dos livros do próprio Trotsky – “História da Revolução Russa” e “A Revolução traída” – ou do célebre “Os dez dias que abalaram o mundo”, do comunista americano John Reed (vivido por Warren Beatty no filme Reds). Quem, ao contrário, escreve com o benefício do distanciamento histórico consegue ser mais crítico – caso dos historiadores Richard Pipes, Anne Applebaum ou Simon Sebag Montefiore. Mas raramente traz ao texto o olhar, a voz e o sabor de quem viveu os fatos. Conciliar, num mesmo relato, a força do testemunho e a visão crítica é o que faz de Victor Serge – autor de “Memórias de um revolucionário” – um caso singular.
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Serge nasceu em Bruxelas em 1890, numa família de exilados russos ligada ao anarquismo. Na juventude, também se tornou anarquista. Foi para Paris e passou a trabalhar como jornalista. Ligações com terroristas o levaram à prisão. Libertado, fugiu para Barcelona, onde recebeu as primeiras notícias da agitação na Rússia. Imbuído de idealismo, fez de tudo para unir-se à Revolução. Só conseguiu descer na Estação Finlândia, de Petrogrado, em janeiro de 1919, pouco mais de um ano depois da tomada do poder pelos bolcheviques (e quase dois depois da chegada triunfal de Lênin). Entrou no partido e descreve, da perspectiva de quem viu e viveu tudo, as contradições que afogaram os ideais revolucionários no sangue, na fome, na miséria e na mentira.
O desabastecimento provocado pela coletivização forçada toma conta do país e mata milhões de fome, enquanto dirigentes comunistas insistem em dizer que o mercado negro “não tem nenhuma importância”. Multidões famélicas chegam dos campos às cidades, tentam fugir para outros países. O controle da informação se encarrega de esconder as notícias ruins. O breve alívio trazido pelo fim da guerra e pela Nova Política Econômica de Lênin – com autorização limitada ao comércio e à propriedade – é insuficiente para debelar a miséria endêmica. A expropriação imposta por Stálin reduz o número de lares camponeses de 25,8 milhões, em 1929, para 20,6 milhões, em 1936. O rublo evapora. A escassez de carne leva à execução de 47 acusados de sabotagem, no mesmo dia em que o poeta indiano Rabindranath Tagore dá lições sobre o “novo humanismo” numa recepção elegante em Moscou.
Ao longo da narrativa de Serge, sucedem-se nomes que adquirem relevo na máquina partidária apenas para tombar, vítimas do terror da Tcheka e da GPU. Fuzilamentos arbitrários, exílios, confissões forçadas, traições, desaparecimentos, suicídios em série, assassinatos. “A palavra ‘totalitarismo’ ainda não existia”, diz Serge sobre as restrições às liberdades desde Lênin. “A coisa se impunha diante de nós, sem que tivéssemos consciência.” Anos depois, numa carta de 1932, ele registra pela primeira vez o adjetivo “totalitário”, em referência ao regime soviético. “Estamos cada vez mais na presença de um Estado totalitário, castocrático, absoluto, embriagado com seu poder, para o qual o ser humano não conta”, escreve.
Àquela altura, Serge já fracassara ao levar a revolução à Alemanha, voltara à Rússia e, num expurgo, fora punido com o exílio, pela proximidade a aliados de Trotsky (com quem romperia anos depois). Por pressão internacional, obtém autorização para emigrar. Seu filho fica maravilhado com os doces e iguarias à venda na Bélgica. Vai para a França, de onde é forçado a escapar para o México na Segunda Guerra Mundial. Em seus escritos, Serge defende as liberdades de pensamento, de expressão, a democracia, o direito à verdade e o respeito ao ser humano. Dizia-se “socialista”, embora suas ideias nada tivessem a ver com o regime que levou anos para cair na União Soviética e, ainda hoje, da China à Coreia do Norte, resiste a tomar em definitivo o destino da maldição de Trotsky.
Fonte: “Época”, 05/11/2017.
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