Num final de tarde de céu azul e clima ameno fui, com minha família, assistir a uma apresentação de um grande músico no Parque do Ibirapuera. O concerto se daria na parte externa do magnífico auditório projetado por Oscar Niemeyer.
Ao nos aproximarmos da marquise do parque, também desenhada por Niemeyer, deparamos com um amplo número de viaturas e guardas metropolitanos que circundavam milhares de jovens, sobretudo da periferia, que se reúnem naquele espaço todos os domingos.
O clima parecia tenso e a estética era opressora, em forte contraste com o clima relaxado do gramado, onde o público de Philip Glass aguardava o início da apresentação, circundado apenas por ipês e acácias em florada. A proximidade geográfica era inversamente proporcional à segregação dos dois grupos. Perguntei a um dos guardas o que estava acontecendo e ele me respondeu: “apenas rotina”.
Lembrei-me imediatamente do livro “A Formação de Jovens Violentos”, recentemente publicado pelo sociólogo e jornalista Marcos Rolim, que busca compreender as razões que levam muitos jovens a empregar a violência extrema no seu cotidiano. Nos últimos 20 anos mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil, apenas para destacar a faceta mais dramática de nossa violência. Em sua grande maioria os mortos são
jovens, negros, que habitam nossas periferias sociais, o que demonstra um claro processo de banalização dessas vidas.
Marcos Rolim se dispôs a ouvir, por meio de entrevistas em profundidade, 17 jovens violentos, envolvidos em homicídios, latrocínios e estupros, internos na FASE, antiga FEBEM, de Porto Alegre. Os depoimentos desvendam uma trajetória comum, marcada pelo desalento, a violência e o fracasso.
A quase totalidade desses jovens conheceu a violência em casa. Foram vítimas de pais e padrastos. Viram irmãos morrer nas mãos de traficantes e da polícia. As mães são os únicos elos afetivos. Também deixaram a escola muito cedo, sendo socializados a partir dos 12, 13 anos pelo tráfico, onde adquiriram suas identidades e valores. Conheceram a polícia muito cedo. Invariavelmente experimentaram a violência policial, até se tornarem “sócios” por intermédio da extorsão e de corrupção.
A investigação não parou por aí. Marcos Rolim também entrevistou em profundidade amigos de infância desses jovens que, entretanto, não se envolveram com o crime. Em comum, as dificuldades econômicas e a vida em zonas de risco. As trajetórias se distinguem, no entanto, pela ausência de violência familiar na história desses jovens, por uma experiência escolar positiva e, sobretudo, por não terem sido capturados pelo microssistema do tráfico e do arbítrio institucional, onde seus amigos foram ao mesmo tempo submetidos e treinados dentro de uma rotina de extrema violência.
Voltamos para casa com dois sentimentos e uma certeza. De um lado, contentes pelo privilégio de partilhar a sublime música de Philip Glass com milhares de pessoas no parque. De outro, moralmente constrangidos por termos testemunhado a rotina da opressão e da vigilância, que apenas empurra tantos jovens para uma socialização perversa, que conduz inevitavelmente a mais violência. E a certeza de que esses mundos aparentemente apartados estão, na verdade, estruturalmente imbricados.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 11/11/2017
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