A cada início de ano, é costume renovar esperanças e fortalecer confianças em relação ao futuro. Tempo de arrumar armários, limpar gavetas, fazer faxinas e vestir cores que – acreditam muitos – ajudem a realizar antigos desejos e aspirações. Nada existe de errado com esses hábitos, descontado o teor de superstição que costuma motivá-los, nem com o fato de se os estender para o campo das relações econômicas. Afinal, também na economia a esperança pode, assim como a fé, mover montanhas. Mas, para tal, precisa fundamentar-se em fatos concretos e não em crenças escatológicas ou mitos ideológicos.
Um pouco de realismo sempre faz bem, mesmo ao elevado custo de eventualmente abalar as confianças e esperanças que os cidadãos brasileiros, pacientemente, procuram robustecer em cada réveillon, desde que Cabral aqui aportou.
Os atos econômicos não são praticados em um vazio institucional, já que o homo economicus, aquele robô frio, calculista e sempre pronto a maximizar resultados, sejam eles lucros, utilidades, taxas de retornos ou quaisquer outros, só existe nos livros de economia. Na vida real, as relações entre economia, política, direito, ética e outros campos da ação humana objetiva e subjetiva são inevitáveis, sendo a soma dessas inter-relações o que se chama, reverentemente, de sociedade. Em outras palavras, como dizia o sábio Professor Eugenio Gudin, coeteris non sunt paribus… O hábito arraigado de separar-se o econômico do social, do político, do ético e do legal, de que é exemplo o discurso de contrapor o “mercado” ao “social” – quase sempre denegrindo o primeiro e enaltecendo o segundo – é uma das causas das repetidas frustrações das esperanças de crescimento econômico sustentado.
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Ora, como pessimistas nada mais são do que otimistas bem informados, tentemos não ser nem uma coisa nem outra: busquemos, apenas, ser realistas e olhemos para as instituições que nos circundam. O que vemos, neste início de ano, não é diferente do que sempre vimos em muitos outros janeiros: (a) no seio do próprio governo, um cabo-de-guerra, particularmente perigoso em ano de eleições, confrontando, de um lado, pragmáticos que em boa hora acolheram o princípio moral da responsabilidade fiscal e, de outro, pretensos progressistas, presos a dogmas ideológicos e para quem responsabilidade fiscal é coisa de neoliberais; (b) observando o episódio das convocações extraordinárias do Congresso e de algumas assembléias estaduais, para não citarmos outros, vemos um legislativo desacreditado e alheio aos males que uma explosão de gastos públicos provocará em nossa precária situação fiscal; (c) o judiciário, em condições semelhantes e emitindo sinais inoportunos de politização; (d) uma carga tributária extorsiva e crescente; (e) uma burocracia sufocante e cada vez maior, mais politizada e menos profissionalizada; (f) uma crença generalizada na seita de que a pobreza de muitos é fruto da riqueza de poucos; (g) uma perigosa incitação ao ódio, derivada do conceito de lutas de classes, em que se lança, sob o nome de políticas afirmativas, negros contra brancos, pobres contra bem sucedidos, mulheres contra homens e homossexuais contra heterossexuais; (h) valores morais em clara decomposição e (i) centralização crescente de poder, em detrimento do federalismo.
A conseqüência disso tudo é uma anomia generalizada, em que o cidadão, tornado servo de um Estado que há muito tempo pouco ou nada lhe oferece, simplesmente, passa a descrer nas instituições. O país clama por um banho institucional de bom senso, sem o qual toda a esperança dos rituais de passagem de ano não passará de um transtorno obsessivo compulsivo coletivo, repetido ano após ano, até o fim dos tempos…
Todos os parágrafos em itálico acima foram publicados em 7/1/2004, na extinta versão impressa do “Jornal do Brasil”, em artigo com o título “Novo ano, velhas incertezas” e que foi, naquele mesmo ano, tema da prova de Português de um concurso para o Judiciário do Rio de Janeiro. Lembro-me da funcionária da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ entrando em minha sala em uma segunda-feira, mostrando-me um caderninho impresso com a prova e perguntando-me, com ar maroto: “Professor, vê se o senhor reconhece esse texto”… Fiquei espantado por terem escolhido meu artigo para formularem vinte questões gramaticais e, movido por curiosidade, fui tentar responder uma a uma. Para meu espanto, ao confrontar com o gabarito, verifiquei que tinha acertado apenas cinco. Fora reprovado redondamente em meu próprio artigo! Aquilo me espantou – sempre fui, sem forçada modéstia, talvez por um dom natural, um ótimo aluno do idioma de Camões e Eça -, até que percebi, para meu alívio, que a maioria das questões, pontuadas aqui e ali por indagações gramaticais, começava com a indefectível sentença “o que o autor quis dizer com… (e seguia-se uma frase extraída do artigo)”. Como nunca tive problemas em expressar por escrito o que penso, pude então concluir que minha “reprovação” em meu próprio texto não era bem uma reprovação, mas uma indicação de que os formuladores do concurso é que não haviam entendido, por ideologia ou, mesmo, incompetência (aposto mais na primeira dessas hipóteses) o que eu escrevera.
O Brasil tem mesmo uma vocação patológica para o atraso, uma índole secular para a pobreza. Tudo o que eu “quis dizer” no artigo era de um teor liberal, algo absolutamente incompreensível – e não só para formuladores de provas. É verdade que em quatorze anos vem crescendo o número dos que se interessam pelas ideias liberais, mas o caminho a ser percorrido ainda.
Mas a título de quê trago essas lembranças à baila, quatorze anos depois? Simplesmente porque – como está em Ecl. 1;9: “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol” – se alguma coisa mudou durante todo esse tempo, foi a incerteza com relação aos rumos do país – ética, econômica e política -, que só aumentou, ano após ano.
O que devemos, então, esperar deste ano da graça de 2018? Se me instassem a responder em uma única palavra, eu diria, sem pestanejar: incertezas. Sim, dúvidas morais, obscuridades políticas e ambigüidades econômicas. Incertezas sempre devem ser levadas em conta em qualquer análise de problemas sociais, mas o que chama a atenção é que muitas dessas inseguranças já poderiam ter sido eliminadas, caso nossa sociedade tivesse trilhado caminhos menos sinuosos do que os escolhidos.
No que diz respeito à moral, nesses quatorze anos, tudo piorou, desde o chamado mensalão até as incríveis demonstrações de lassidão reveladas pela operação Lava Jato; no plano político, como decorrência parcial, chegamos ao impeachment daquela presidenta estocadora de ventos e mentora de vários crimes de responsabilidade fiscal e a uma descrença quase absoluta em todos os seus mecanismos (apenas a seita dos adoradores do PT continua acreditando em seus líderes, quase todos condenados por nossa débil justiça); e no plano econômico, mesmo com a mudança acertada de rumos promovida desde maio de 2016, não podemos deixar de nos perguntar se tais mudanças terão a continuidade e o aprofundamento necessários e imprescindíveis ou se o resultado das urnas eletrônicas determinará sua abolição e a volta às trevas dos falsos progressistas, caso algum candidato de esquerda, seja ele petista, tucano, pedetista ou “enredado” vença o pleito.
Um exemplo de que nada mudou estruturalmente no Brasil desde aquele concurso é que, certamente, os aprovados naquele concurso, atualmente devem ganhar um salário duas ou três vezes maior do que os meus atuais vencimentos, vinte e seis anos depois de meu ingresso, por concurso, como Professor Doutor na UERJ.
É realmente impressionante nossa vocação para o atraso: nesses anos, o estado foi irresponsavelmente dilatado, o patrimônio (dito) público foi levianamente dilapidado, o poder judiciário foi inconsequentemente politizado, o legislativo desvairadamente desmoralizado, o executivo abjetamente desacreditado e o cidadão vilmente explorado.
Como escreveu Santo Agostinho de Hipona, “a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”. A primogênita, a indignação, veio à luz a partir de 2015 com o povo nas ruas atuando como parteiro, e vem aumentando de tamanho desde então. Por isso, creio que o melhor que podemos esperar de 2018 é que as urnas (mesmo sendo eletrônicas) tragam à Terra Brasilis a segunda das irmãs.
Fonte: “Ubiratan Iorio”, 03/01/2018
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