Será que uma preponderância das ações humanas sobre os demais vetores que alteram a história da Terra teria mesmo tirado o mundo do estável Holoceno, levando-o a uma nova e ainda desconhecida Época, batizada de Antropoceno?
Respostas a tal pergunta têm causado muito mais perplexidade do que se poderia supor. É que a ideia original sofreu incontáveis metamorfoses após extravasar o âmbito científico. Tanto que a melhor revisão de tamanha algaravia realça no título o trocadilho “Antropo – cena”. Nela o geógrafo Jamie Lorimer tipifica os quatro padrões não-científicos em que a noção passou a ser usada: “zeitgeist” intelectual, provocação ideológica, novas ontologias e ficção científica (“The Anthropo – scene: a guide for the perplexed”, Social Studies of Science, 2016, 47:117-142).
José Eli da Veiga: Birra de cientista?
Balanço similar foi logo depois publicado por colega da mesma instituição, a School of Geography and the Environment da Universidade de Oxford. E nada parece ter escapado ao ecólogo Yadvinder Malhi em extenso artigo mais focado nas contribuições científicas sobre a questão: “The concept of the Anthropocene” (Annual Review of Environment and Resources, 2017, 42:25-1 a 25-28).
Infelizmente não há como resumir nestes poucos parágrafos tão bem-vindas descrições analíticas dessa “antropo – cena”. Mas dá para arriscar uma breve síntese das quatro principais racionalizações que provocam.
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Prepondera na comunidade científica a suposição de que o conhecimento das influências que o processo civilizador exerce sobre a dinâmica ecossistêmica virá a permitir gestão informada e racional dos problemas, mediante novos modos de governança. Para a pergunta “como lidar com o Antropoceno?”, essa é a resposta implícita no que dizem os pesquisadores da chamada “Ciência do Sistema Terra”, e cabalmente explícita entre cientistas políticos que estudam a sustentabilidade global: http://www.earthsystemgovernance.org/.
Bem próximo dessa primeira atitude está o moderado pragmatismo que obteve ampla visibilidade com a proposta de um “espaço seguro e justo para a humanidade”, ilustrada pelo “doughnut” desenhado pela economista Kate Raworth, pesquisadora sênior da Oxfam internacional. Bem semelhante à inclinação de pesquisadores que, no âmbito da Biologia da Conservação, enfatizam mais a restauração das funções dos ecossistemas do que a necessidade de imensas reservas para a preservação de espécies nativas.
Extrapolação prometeica dessa esperança é a da terceira e bem mais coesa corrente, que lançou em 2015 o Manifesto Ecomodernista, e que anima o aguerrido The Breakthrough Institute (https://www.thebreakthrough.org). Tal aposta num antropocentrismo esclarecido vê a nova Época como excelente oportunidade para se buscar com mais afinco a desejada desmaterialização da economia. Isto é, a ambição de que o uso de recursos naturais e os impactos ambientais deixem de acompanhar o crescimento econômico, chamada de “decoupling” e traduzida por descasamento ou desacoplamento.
Em quarto sobressai-se a atitude inversa, dos que, alarmados com provável ruptura cataclísmica do chamado “Sistema Terra”, só admitem eventual saída se a humanidade se mostrar capaz de um drástico abandono do antropocentrismo. O principal expoente de tão encantadora perspectiva é o professor australiano de ética pública Clive Hamilton, autor de Defiant Earth: The fate of humans in the Anthropocene (Polity, 2017).
Não é simples coincidência o fato de esses quatro discursos normativos corresponderem às mais conhecidas propensões psíquicas dos humanos sobre a natureza que os cerca. Para os que a têm como essencialmente benigna, ela seria tão robusta, estável e previsível, que um bom manejo contrabalançaria males impostos pela ascensão dos humanos. Para os que, ao contrário, a percebem como essencialmente delicada, seria tão frágil, precária e efêmera que os humanos deveriam lidar com ela como se estivessem pisando em ovos.
Em terceiro estão os que, em cima do muro, combinam as duas predisposições anteriores, pois a vislumbram como simultaneamente tolerante e perversa. Para eles, em certas condições a natureza se manteria benigna, mas em outras se tornaria periclitante. E no quarto grupo estão os que veem a natureza como tão caprichosa que proibiria qualquer pretensão humana de gerenciá-la.
Como se vê, as retóricas políticas dos protagonistas da “Antropo – cena” se parecem demais ao que há muito tempo é estudado como “os quatro mitos sobre a natureza”, muito bem caracterizados pelo emérito professor John Adams no livro Risco (Ed. Senac, 2009:69). E elas só podem ser razoavelmente comparadas e avaliadas à luz de cuidadosa análise das evidências apresentadas pelos principais defensores da tese segundo a qual o Holoceno já era, o Antropoceno já é, e desconhece-se o que já vem. Exatamente o que pretende conseguir a série de seis seminários semanais que ocorrerá em março e abril no IEE/USP. Os leitores mais interessados ficam então convidados a consultar a agenda de eventos em: http://www.iee.usp.br/.
Fonte: “Valor Econômico”, 31/01/2018