O clássico “Teoria da Taxa de Juros”, de Irving Fisher, para muitos o maior economista americano de seu tempo, estabeleceu os termos da teoria da formação da taxa de juros e da poupança.
A poupança —deixar de consumir parte da renda que se tem— envolve escolha entre o presente e o futuro. Essa escolha é influenciada pelas instituições de cada sociedade e pela percepção de risco dos indivíduos.
Sociedades em que a maior parte da população está em idade de trabalhar poupam mais do que sociedades envelhecidas ou com muitas crianças. Também o desenho dos seguros públicos influencia as escolhas ao longo do tempo: em geral a poupança familiar é baixa em sociedades quando o sistema público garante aposentadoria com taxa de reposição próxima de 100% —razão entre o benefício previdenciário e a renda na atividade.
Trabalho recente sugere que boa parcela da elevação da taxa de poupança chinesa nas últimas décadas pode ser explicada pela interação entre a queda do número de filhos, em razão da política de filho único, e as limitações da seguridade social chinesa para a terceira idade.
Há motivos microeconômicos que afetam a decisão de poupar que podem parecer bizarros à primeira vista. Por exemplo, há evidências de que o desbalanceamento de sexos na China, resultado da preferência das famílias por filhos homens, explica parte da elevação da poupança no país. As famílias que têm meninos precisam adquirir uma moradia para que o seu filho seja mais atraente no mercado de casamentos.
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Assim, há sólida evidência de que o modelo básico de Fisher, com ajustes para as especificidades institucionais de cada sociedade, explica perfeitamente bem as diferenças de comportamento de consumo e poupança, entre as
diferentes sociedades.
Na academia brasileira, difundiu-se leitura heterodoxa da obra de Keynes que considera que a poupança macroeconômica, isto é, a diferença entre a renda nacional total e o consumo, não resulta dos incentivos. A poupança seria um resíduo em que os incentivos, as escolhas individuais
e, consequentemente, a escolha entre o presente e o futuro não teriam
nenhum papel em sua determinação.
Em última instância, as famílias chinesas poupam metade de sua renda disponível não devido às necessidades de acumular recursos para a aposentadoria, custear o estudo superior dos filhos, se preparar para emergências com saúde etc.
Na visão delirante dos heterodoxos brasileiros, a poupança chinesa é elevada porque o câmbio é artificialmente desvalorizado, a conta de capital é fechada, os juros são baixos e, talvez, devido ao fato de boa parcela do setor produtivo ser estatal. Não me pergunte qual a relação desses itens com a escolha das famílias de consumir
somente metade de suas rendas.
Assim, para a heterodoxia brasileira, nós poderíamos replicar por aqui as políticas macroeconômicas chinesas sem problemas, pois naturalmente a poupança iria se elevar e faria com que a conta fechasse.
Tentamos esse diagnóstico no primeiro mandato de Dilma. Os resultados foram ruins.
A leitura padrão é mais aderente aos fatos. Os incentivos microeconômicos e a percepção de risco determinam a poupança. Sociedades com poupança elevada apresentam juros reais de equilíbrio baixos. Há, portanto, espaço para que os formuladores de política econômica operem em regime de câmbio fixo ou fortemente administrado, fechem a conta de capital e pratiquem juros baixos. A causalidade é a inversa da que os heterodoxos pensam.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/03/2018