Esses bolinhos chamados de “donuts” pelos americanos, “doughnuts” pelos britânicos e “dónutes” pelos portugueses têm a forma de rosca, ou de miniatura de câmara de ar de pneu. É preciso ter essa imagem em mente para poder entender o título de oportuno livro didático sobre o pensamento econômico, lançado pela Random House Business Books: Doughnut Economics. A autora, Kate Raworth, hoje professora em programas de pós-graduação das universidades de Oxford e Cambridge, já tinha antes grande notoriedade por atuações no Pnud e na Oxfam, alicerçadas em pesquisas sobre empreendedorismo social na Tanzânia.
A imagem do bolinho foi inspirada pelo diagrama que vem sendo usado desde 2009 pelos cientistas que estudam o “Sistema Terra” ao procurarem sintetizar uma dezena de condicionantes ecológicas do desenvolvimento humano: as já bem conhecidas “fronteiras planetárias”. O que a autora pretende é que em tal diagrama sejam embutidas, de forma bem explícita, suas fronteiras internas de natureza social.
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Assim, na parte externa da rosca aparecem a dezena de limiares naturais: acidificação dos oceanos, aquecimento global, depleção da camada de ozônio, erosão da biodiversidade, excessivas cargas de nitrogênio e fósforo, inseguranças hídricas, poluições do ar, poluições químicas e usos irresponsáveis dos solos. E por dentro, uma dúzia de direitos humanos que continuam desrespeitados aos setenta anos de sua Declaração Universal. Também em ordem alfabética: água, alimento, educação, energia, equidade social, habitação, igualdade de gênero, influência política, paz-e-justiça, redes, saúde, trabalho-e-renda.
O potencial comunicativo dessa criativa alegoria visual vem sendo comprovado na prática, principalmente em arenas globais, como a da árdua elaboração da Agenda 2030 pela Assembleia Geral da ONU, ou em discussões no âmbito do Fórum Econômico Mundial de Davos. Porém, vai muito além a principal contribuição do livro, pois sua real ambição é expor a tese de que são sete os “caminhos” a serem trilhados para que o pensamento econômico supere sua trágica obsolescência. Sete insights nos quais ela diz que gostaria de ter esbarrado ao longo da graduação e mestrado em economia do desenvolvimento. Daí o subtítulo: “Seven Ways to Think Like a 21st-Century Economist”.
Dos sete capítulos dedicados à defesa de tal tese, quatro são sobre crescimento econômico. 1- A autora mostra esperança de que não demore para que os economistas venham a se tornar “agnósticos” em vez de “viciados” em crescimento. Pois eles já não podem supor que 2- o crescimento seja redutor de desigualdades, ou que ele 3- ajude as sociedades a cuidarem do ambiente. Três “caminhos” que juntos levariam ao 4- substituição do PIB por bússola similar ao seu curioso “doughnut”.
Bem mais desafiadores são os demais “caminhos”, pois esbarram em dificuldades cognitivas ainda mais sérias: a ideia de mercado autorregulado, o mito do homem econômico racional, e, sobretudo, a ingênua noção de equilíbrio. A esse trio a autora contrapõe outro, formado pela visão de uma economia integrada e imersa (“embedded”), o entendimento da adaptabilidade humana, e a difícil ideia de complexidade dinâmica.
Um dos grandes méritos da narrativa de Raworth é trocar em miúdos essa tal de “complexidade”, assunto muito em voga mas sobre o qual as retóricas costumam ser das mais intangíveis, volúveis e etéreas, quando não fantasiosas. Começa por rememorar três noções relativamente simples: estoques/fluxos, circuitos de retorno (“feedback loops”) e demora/retardamento (“delay”), para em seguida desafiar o leitor a refletir sobre as possíveis resultantes das interações entre as três. Justamente o que faz emergir comportamentos não-lineares de intrincados sistemas adaptativos que – longe do equilíbrio – tanto podem se manter relativamente estáveis, quanto se mostrar capazes de gerar abruptas oscilações, explosões de bolhas, crashes, convulsões, colapsos, etc. Para Raworth, essa “dança da complexidade” paulatinamente substituirá o equilibrismo newtoniano que ainda escraviza o pensamento econômico.
Entre os poucos defeitos dessa excelente exposição sobre sete avenidas evolutivas abertas ao pensamento econômico, destaca-se a incoerência entre a constatação de que são gigantescas as pressões em favor da inércia e a entusiástica aposta da autora de que o ícone da rosquinha possa triunfar por volta de 2030. Pois suas argumentações sugerem, ao contrário, que tamanha revolução científica nem venha a ocorrer neste século, fazendo com que o subtítulo mais apropriado para eventual tradução possa ser algo como “Sete caminhos para se pensar como economista no Antropoceno”.
Não por acaso, a primeira crítica pungente à economia convencional surgiu no início dessa nova Época, da lavra de Nicholas Georgescu-Roegen, ainda nos anos 1960. Mas, como a questão do Antropoceno só de raspão é abordada no livro, ficam seus leitores convidados a assistir o vídeo da conversa sobre esse tema no IEA/USP: http//:www.iea.usp.br/eventos/antropoceno
Fonte: “Valor Econômico”, 25/04/2018