Todo ano, o prazo para a entrega da declaração do Imposto de Renda, sintomaticamente, deflagra mais uma aflição nacional. Nele se encarna o fantasma da falta de coerência entre a sociedade e o Estado. Apesar dos lembretes e da aparente compreensão de que os impostos têm um papel fundamental na erradicação de imensas desigualdades sociais, milhões entregam suas declarações com atraso.
Todo ano eu testemunho amigos cheios de uma culposa adrenalina porque deixaram para a última hora o preparo de suas declarações. Eles sabem do atraso, admitem não haver desculpa para uma inadimplência conhecida por parte de gente tão politizada mas, mesmo assim, preferem ficar com a sua freudiana amnésia.
Para muitos, há um claro traço de rebeldia e vingança contra o Estado e o Estado encarnado num governo. Coisas do governo não são confiáveis; o Estado sempre está contra o povo, e leis absurdas são legião. Ademais, a estrutura do nosso Imposto de Renda é reversa: os muito ricos pagam menos do que os de baixa renda. Os pobres, eis um argumento geral e válido, são desfavorecidos, e o prazo implacável para pagar impostos contrasta com a abusiva ausência de prazos para terminar estradas, escolas, hospitais e realizar as reformas que o próprio governo tem como inadiáveis.
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A contradição entre prazos fatais para o cidadão e a total ausência de prazo para o governo e os privilegiados é acachapante e somente mostra a aguda desarmonia entre “Estado” e sociedade. Esta, sempre mal-educada, atrasada e inadimplente; aquele, sempre inspirado nas melhores leis, constituições e regras do “mundo civilizado” mas, como compensação, com os mais cínicos e incompetentes administradores do mundo. Tanto que eles foram descaracterizados de suas funções para serem desclassificados como “políticos”. Uma palavra equivalente, com o perdão do leitor e da leitora, a meliante, malandro, bandido e, no limite, f.d.p!
Neste contexto, não me esqueço de uma questão levantada por um colega muito respeitado quando explica o seu atraso e sua relutância. Por que, dizia ele, pegar e contribuir para um sistema injusto?
Não há dúvida de que as coisas mudaram muito para pior. Sou de um tempo em que escritores, jornalistas e professores eram isentos do Imposto de Renda pelo artigo 113 da Constituição Federal de 1934 (eu sou de 36). A obviedade em proteger formadores da opinião publica não precisa ser acentuada diante da índole ditatorial-patrimonialista do Estado Novo. Mas é paradoxal, como acentuei num ensaio sobre o “corporativismo” publicado na revista “Interesse Nacional” no ano passado, que o governo revolucionário de Vargas, feito para os “trabalhadores” (netos de escravos!), tenha desobrigado de um imposto essencial jornalistas, escritores e professores — uma isenção removida três décadas depois, em 1964, pelo reacionário regime militar. Noto, de passagem, como tais paradoxos revelam os riscos de uma visão linear da sociedade.
Neste contexto, cabe uma nota pessoal. Quando visitei Harvard pela primeira vez, deixando o Rio em setembro de 1963, fui ao Ministério do Trabalho solicitar um documento de isenção do meu Imposto de Renda, obrigatório para obter o passaporte, pois era professor do Museu Nacional. Quando voltei, em agosto de 1964, para viver no regime golpista do governo Castelo Branco, fui obrigado a entrar na lista dos contribuintes da Receita Federal. Verifiquei que minha corporação havia perdido um privilégio fundamental e, dali em diante, jamais deixei de entregar minhas declarações no prazo.
Quando comentei esse assunto com meu tutor Richard Moneygrand, dele ouvi um axioma cultural americano: na vida — disse — só havia duas coisas inexoráveis: morrer e pagar Imposto de Renda! Muito diferente da vossa democracia — continuou —, na qual toda lei universal (esse apanágio da igualdade) sempre tem exceções. Vosso governo é mestre em bater simultaneamente na tecla do universal e do particular, daí o desajuste.
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Como explicar esses costumeiros atrasos? Quando penso nos Estados Unidos e no Brasil, me vêm à mente situações com início e fim bem marcados por lá; e começos e fins gradativos ou intermináveis aqui. Tudo se passa como se houvesse nitidez nos Estados Unidos e a névoa do privilégio no Brasil. Porque entre nós, nada começa sem o mais importante, de modo que tudo tem um momento movediço, cujo valor depende do prestígio e da importância dos que ocupam o topo da pirâmide. Somente nessa sufocante avalanche de crises é que estamos buscando clareza porque, em democracia, todos têm prazo, inclusive e, sobretudo, o governo.
Fonte: “O Globo”, 09/05/2018