Foi por acaso que o pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas, descobriu o documento em que o general Ernesto Geisel, havia pouco empossado na Presidência da República, reivindica para o Palácio do Planalto, na figura do general João Batista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), a responsabilidade por decidir sobre a execução de presos pela ditadura.
“Não imaginei que teria tamanha repercussão”, me disse Matias. “Pus no Facebook e, quando vi, tinha explodido.” Com data de 11 de abril de 1974, o memorando do então diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Colby, ao secretário de Estado, Henry Kissinger, descreve um encontro de Geisel e Figueiredo com os generais Milton Tavares e Danton Avelino, quando um passava ao outro a chefia do Centro de Inteligência do Exército (CIE).
Não era novidade o aval de Geisel às mortes. Em sua monumental série de livros sobre a história da ditadura, o jornalista Elio Gaspari relata pelo menos dois diálogos em que ele o admite explicitamente. Ao general Dale Coutinho, em fevereiro daquele mesmo ano, Geisel afirmou: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
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Uma coisa, porém, são diálogos, outra é um documento histórico do governo americano, com o reconhecimento explícito de 104 pessoas “sumariamente executadas pelo CIE durante o último ano aproximadamente” – período que cobre sobretudo o governo Médici. A Comissão Nacional da Verdade identificou 138 mortos e desaparecidos entre 1972 e 1973. Em 1974, já sob Geisel, o total comprovado é de 53 (nos 21 anos de ditatura, foram 434).
“As frases anteriores de Geisel se referiam sobretudo ao contexto da guerrilha do Araguaia, em que a cúpula havia tomado a decisão de avançar com as execuções sumárias”, diz Spektor. “É a primeira vez em que aparece um número de mortos atribuídos ao governo Médici – e em que o presidente chama para si a responsabilidade por execuções futuras. Prova de que o Planalto tomava decisões sobre vida e morte.”
Naquele início de governo, Geisel precisava impor sua autoridade sobre o CIE, que nos anos anteriores funcionara como reponsável quase autônomo pela política de repressão e pelos centros de tortura. Havia uma dúvida no ar sobre o que significaria a política de distensão preconizada pelo novo presidente.
A centralização das decisões no Planalto era uma tentativa de segurar a linha-dura que queria proseguir com a tortura e as execuções. Não funcionou, como demonstram os casos posteriores do jornalista Vladimir Herzog (1975) e do operário Manuel Fiel Filho (1976). A tensão entre o Planalto e o grupo que comandava os porões persistiria até o fatídico 12 de outubro de 1977, quando Geisel demitiu o general Sylvio Frota do ministério do Exército enfim se impôs à “tigrada”.
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As relações do governo Médici com a CIA eram próximas. Agentes americanos, de acordo com os relatos que embasam a série de Gaspari, conheciam os porões e tinham relações diretas com vários responsáveis pelas torturas. No governo Geisel, houve um estranhamento com os americanos. Isso ficaria claro nas tensões geradas pelo programa nuclear desenvolvido com a ajuda da Alemanha. Geisel recusou dois convites do presidente Richard Nixon para visitar os Estados Unidos.
O relato da CIA demonstra que os americanos acompanhavam de perto as movimentações do novo governo. “Quem era o informante da CIA?”, pergunta Spektor. “Não descarto a possibilidade de que tenha sido um dos participantes da conversa.” Nesse caso, o próprio governo teria mandado um recado aos americanos sobre quem tomava as decisões, para que eles contivessem os arroubos de seus agentes que frequentavam os porões.
Além da importância histórica, a descoberta revela a principal deficiência de nossa pesquisa sobre o período: as restrições impostas pelo próprio Exército à consulta a seus arquivos e a destruição de documentos. É lamentável que o Brasil precise recorrer a arquivos americanos para conhecer detalhes de sua própria história.
Pela lei americana, documentos são liberados a partir de 30 anos da data de classificação. Com base na legislação que regula o acesso à informação, historiadores conseguem muitas vezes antecipar os prazos. O documento escavado por Spektor está online pelo menos desde 2015, mas ele próprio não sabe quando foi liberado ao público. “A CIA libera documentos quase todo dia na internet”, diz. “Continuo vendo para ver se tem algo novo.”
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Com esforços dedicados de consulta aos arquivos americanos, é possível achar material que garanta anos de notícias sobre o regime militar. Nos próximos anos, muitas manchetes de jornal ainda poderão sair de uma consulta simples ao site da CIA, como a feita por Spektor.
Isso revela, acima de tudo, a miopia dos generais que acreditam preservar algum tipo de segurança mantendo a restrição aos arquivos, como fizeram por ocasião da Comissão da Verdade. É preciso abrir os arquivos e deixar a verdade vir a público. A luz do Sol, como diz a tão citada frase do juiz americano da Suprema Corte Louis Brandeis, continua a ser o melhor desinfetante.
Fonte: “G1”, 11/05/2018