Gilberto Freyre afirmou em “Casa Grande e Senzala” (1933) que o Brasil era uma “Rússia Americana” porque marcado pela “mística revolucionária, messianismo e identificação do redentor com a massa”, além do culto a personalidades fortes. E citava o séquito jacobino de Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro, e o entusiasmo popular pela figura majestática do monarca.
Este último exemplo contrasta com a forma com que o autor descreveu Pedro 2º: “um pastor protestante oficiando em templo católico”. Essa imagem é consistente com a descrição de Joaquim Nabuco do severo e circunspecto imperador: “Um monarca orgulhoso de sua própria tolerância”.
Nabuco chamou atenção para o nosso liberalismo incipiente que conjugava apoio parlamentar (o elemento liberal) e discricionariedade do monarca (o iliberal): “O presidente do conselho [de ministros] no Brasil não era nem um chanceler russo, uma criatura do soberano, nem um primeiro ministro inglês, feito somente pela confiança dos comuns”.
Leia mais
Rolf Kuntz: Haverá novo presidente, mas de que República?
Marcos Cintra: Falência do Estado brasileiro
E explicou: “A delegação da Coroa era para ele tão necessária e tão importante como a delegação da Câmara, … ele tinha tanto que dominar o capricho, as oscilações e as ambições do Parlamento, como conservar sempre inalterável o favor, as boas graças do imperante”.
O elemento iliberal se impôs: a partir dos anos 1930, a apologia do homem forte tornou-se ainda mais avassaladora do que quando Freire iniciou suas análises. A história disseminada nas escolas e círculos intelectuais é dominada por uma perspectiva iliberal “tenentista” (afinal seus heróis são, à esquerda, Prestes, e a à direita, Eduardo Gomes), abertamente apologética do Estado intervencionista controlado por figuras dominantes das quais Vargas foi a maior expressão.
A Rússia é a pátria originária do populismo, a própria expressão originou-se do primeiro movimento do tipo, o “Narodnik”. Freyre inspirou-se nele, mas não naturalizou soluções populistas e autoritárias: fez análise positiva, não normativa. O iliberalismo, contudo, tem sido dominante.
+ de Marcus André Melo: “A direita desavergonhada: verdades privadas, mentiras públicas”
O populismo é hostil ao Parlamento e aos políticos profissionais, por isso se fortalece quando escândalos de vastas proporções assolam as instituições. Ele se alimenta do desencanto. O líder popular que estabelece ligações com a “nação” sem mediações de corpos intermediários que as contaminem é a solução “russa”, iliberal, do problema.
Não há solução à margem das instituições. O dilema institucional brasileiro equivale a consertar o barco em meio à tempestade: conciliar a renovação (necessária e urgente) do corpus político com a reconstrução das próprias instituições.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 09/07/2018