Responsável pela negociação de nove acordos de delação na Lava Jato, Rogério Taffarello afirma que, a despeito dos muitos avanços, ainda há insegurança em torno dos acordos de leniência e colaboração premiada. Segundo o advogado, que atuou como consultar nas tratativas de três leniências, diante do risco de que Ministério Público e órgãos do governo não se entendam, as empresas ainda não se sentem motivadas a procurar as autoridades a não ser que as investigações as deixem sem saída.
Além disso, há temor de que os acordos de delação não sejam mantidos até o final.”Os órgãos precisam observar o princípio da boa-fé. Vemos exigências desmesuradas”, diz Taffarello, que é pesquisador na USP e coordena a área de direito penal empresarial do Mattos Filho, uma das maiores bancas do País. “Muitas vezes o colaborador não tem como colaborar mais e o MP aceitou o acordo com aquela limitação de informações”, afirma.
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Estadão – Como analisa a decisão do juiz Sérgio Moro de proibir que órgãos de controle usem provas da Lava Jato contra delatores?
Rogério Taffarello – É uma decisão de conteúdo positivo, pois transmite a mensagem de que os órgãos têm de cooperar. Não é possível haver colaboração num ambiente em que só o particular colabora e o Estado usa a colaboração contra ele. É uma mensagem importante e nós, advogados, temos clamado por ela desde o início da Lava Jato. O outro lado é: um juiz pode dar uma decisão nesse sentido? A lei não proíbe, mas não tem lei dizendo o que fazer com isso. É necessária uma reforma legislativa.
Estadão – Para alguns advogados, bastaria que esses órgãos entendessem que têm de atuar em conjunto.
Rogério Taffarello – Precisamos das duas coisas. Mudar a lei é sempre muito difícil e corre-se o risco de a nova lei vir pior. Mas sobre uma coisa não se tem dúvida: a lei anticorrupção não regula suficientemente o instituto da leniência anticorrupção. Ela não diz como deve funcionar, quem exatamente deve estar na mesa. Enquanto não há mudança legislativa, porém, é preciso criar uma cultura de cooperação e coordenação entre as agências e mais: de deferência interinstitucional. Nos EUA, quando um promotor entende que o outro está mais avançado naquele assunto, ele respeita (e desiste da seguir com a ação). No nosso País, vemos todas essas agências querendo ser protagonistas.
Estadão – Há responsabilidade do Ministério Público na demora em se chegar a um entendimento?
Rogério Taffarello – No campo da leniência, o Ministério Público muito mais acerta do que erra. Teve preocupação de fazer avançar a despeito das alegadas dificuldades do Executivo federal. Talvez esteja mais a dever no campo dos acordos de colaboração premiada. Há situações em que afirma que o colaborador não colaborou o suficiente e, se colaborar mais, pode obter benefícios adicionais. Muitas vezes o colaborador não tem como colaborar mais. Além disso, o MP aceitou o acordo com aquela limitação de informações. Há ainda pedidos de rescisão do acordo sem o contraditório, o que me parece violar o direito de defesa.
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Estadão – Entramos agora numa fase de construção de jurisprudência sobre a efetividade das delações. Até que ponto o delator pode ser responsabilizado pela delação dar em nada?
Rogério Taffarello – A responsabilidade é sobretudo do órgão do MP, que aceitou a colaboração. O investigador que aceita o acordo de colaboração sabe o que está mirando ali e tem a responsabilidade de fazer com que as investigações subsequentes sejam eficientes. O colaborador pode entregar evidências fortes e elas ficarem num escaninho esquecidas. Qual a responsabilidade do colaborador se tudo prescreve depois de um tempo? Óbvio que é zero. Se for verificada omissão relevante ou falsidade documental, ele será responsabilizado. Em toda essa política de acordos, os órgãos precisam observar o princípio da boa-fé na relação entre o Estado e o indivíduo. Vemos exigências desmesuradas, informações sigilosas circulando. Do lado dos órgãos administrativos, vemos certa dificuldade operacional. Nem toda empresa conseguiu esperar cerca de dois anos de pouca atividade dos órgãos do Executivo, o que acabou resultando na quebra ou em pedidos de recuperação judicial de empresas que poderiam ter tido sua leniência resolvida no prazo legal. Seis meses é um prazo mais do que razoável.
Estadão – Uma empresa se sente segura para delatar hoje?
Rogério Taffarello – Ainda há muita insegurança. Uma política de acordos vive de incentivos. Existem muitos desincentivos à cooperação, a começar pelo risco de os órgãos não se entenderem. Chega-se ao ponto que, além de ser protagonista na discussão, cada um quer uma multa maior para chamar de sua. E não existe dinheiro disponível para pagar tudo isso. Isso não significa que, em diversas situações, não seja recomendável que a empresa busque uma leniência. A depender da situação de risco e exposição que uma empresa possa ter, a leniência talvez seja a única saída possível de sobrevivência da companhia. É muito difícil sobreviver com a leniência? É muito difícil. Mas, sem a leniência, não vai haver sobrevida na empresa.
Estadão – A sensação que se tem é que a empresa só tomará a decisão de colaborar hoje se a investigação chegar até ela de forma contundente.
Rogério Taffarello – É isso. E uma política de acordo consistente e madura é aquela que dá incentivos para que a empresa vá até o órgão público mesmo sem ter qualquer notícia ou suspeita de investigação contra ela. Esse talvez seja um cenário que a gente possa chegar daqui a vários anos, que é um cenário saudável de cooperação entre órgão público, Estado e particulares. Isso acontece nos EUA.
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Estadão – O acordo de AGU e CGU com a Odebrecht é um marco?
Rogério Taffarello – Entendo que sim, porque é mais um passo na incessante e permanente busca por coordenação e cooperação entre os diferentes órgãos. O acordo da Odebrecht com o MP é de dezembro de 2016. Estamos em julho de 2018. Não é razoável que demore um ano e meio para que isso aconteça. Mas antes assim do que em cinco anos. Houve, há poucos meses, outro acordo celebrado no modelo de negociações paralelas que geraram acordos-espelho com Ministério Público de um lado e órgãos do Executivo de outro. Há outras negociações em andamento em que está sendo adotada essa estratégia. Tomara que haja resultados concretos. O que está em jogo é muito mais que a Lava Jato. É o sucesso de uma nova política anticorrupção no Brasil, que tem de ser vista como política de Estado e que é a única política que dá resultados concretos. No passado, os resultados eram muito escassos. Havia uma ou outra punição? Sim. Mas a Lava Jato mostra que décadas e décadas de corrupção sistêmica e endêmica passaram ao largo da detecção das autoridades no sistema antigo.
Estadão – Hoje há risco ao redor desse instrumento, ele está bem blindado para o futuro?
Rogério Taffarello – Não dá para garantir com muita certeza, porque isso tudo ainda é fonte de muita tensão dentro do Congresso. E no judiciário também. Algumas das questões que se discutem, por exemplo, no caso J&F (holding que concentra os negócios dos irmãos Joesley e Wesley Batista) farão precedentes muito importantes para várias outra situações em que o MP por vezes cogita pedir rescisão do acordo e que se discutem quais seriam as causas suficientes para uma rescisão. Há uma série de questões ainda que não foram resolvidas, porque não foram sequer apreciadas. Como não há lei dizendo o que pode e o que não pode, você vai dependendo das decisões, vai construindo. Só que a jurisprudência nessa matéria, que é ultra complexa, demora uma década para ser construída.
Estadão – Ainda teremos muito tempo de Lava Jato?
Rogério Taffarello – O Ministério Público – em Curitiba, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro – claramente já tem informações para ir muito longe. Recentemente, um integrante da força-tarefa de Curitiba indicou que há mais 50% para frente. Todo mundo sabe a quantidade das informações que esses acordos massivos forneceram. O processamento disso é natural que demore mesmo. A Lava Jato tem sido extremamente bem-sucedida a despeito de todas as forças contrárias. Não vejo esse perigo de fim da Lava Jato, que alguns vez ou outra apontam. Se as instituições cumprirem seu papel, as investigações seguirão até onde tiverem de andar.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”