A facada em Bolsonaro foi a conflagração trágica da patologia que nos acomete. Passado o momento de crise, é um bom momento para a reflexão por parte da sociedade: fomos longe demais.
O esfaqueador dá mostras de ser um indivíduo mentalmente desequilibrado —o que não exclui ter planejado o ataque—, mas as crenças que o moviam, delírios conspiratórios e projeção de tudo que há de mal na direita (cujo símbolo é Bolsonaro), são relativamente comuns. A diferença é que a maioria dos indivíduos, por mais radicalizados que estejam, não recebem um chamado de Deus para matar o objeto de seu ódio. Falta-lhes o parafuso a menos necessário para colocar essas ideias em prática. Mas as ideias são as mesmas.
Isso pôde ser observado nas reações das pessoas à cobertura da mídia. O ponto de partida de ambos os lados é que a mídia mente sempre, e um áudio de um desconhecido compartilhado em grupos de WhatsApp é mais confiável do que o trabalho de jornalistas profissionais sujeito ao escrutínio público.
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Para a esquerda, todo o atentado foi uma farsa para ajudar Bolsonaro, o que exigiria uma mentira concertada entre milhares de policiais, jornalistas e médicos. Para a direita, foi um plano muito bem arquitetado pelas lideranças políticas do país. Se qualquer uma das hipóteses for verdadeira, cabe indagar: facadas e tiros são mesmo uma reação despropositada?
A loucura tem que parar. Não somos uma cultura naturalmente polarizada. A adesão cega a projetos políticos —estar disposto a matar ou a morrer por um líder ou um partido— é muito mais rara entre nós do que em nossos vizinhos hispânicos. Portugal foi sempre mais pragmático do que a Espanha. Também não somos como os EUA, onde é comum que eleitores de um partido sequer conheçam eleitores do outro; a divisão é profunda, geográfica e entre os dois pólos há um abismo de incompreensão e ódio mútuos.
Por aqui, o caráter não ideológico de muitos partidos (e de muitos políticos mesmo dentro dos partidos ideológicos) refletem o convívio entre os diferentes. Além disso, garantem que a tomada de decisão no Estado não obedecerá a lógica da ideologia pura: terá que ser negociada e matizada. Essa “velha” forma de fazer política tem sido pintada como o grande mal do país, mas sem ela provavelmente estaríamos ainda pior, mergulhados em algum pesadelo tirânico.
+ Marcus André Melo: Clareza de responsabilidade
Saber negociar, ceder e conciliar interesses diferentes são virtudes, não vícios, na política. É o que nos salva da guerra. Com uma Justiça mais atuante, podemos reduzir a corrupção desse jogo. Com uma população mais consciente, podemos reduzir o fisiologismo descarado: ter um pouco menos de negociação de cargos (embora essa sempre vá existir também, dado que indivíduos e partidos têm interesses), um pouco mais de negociação de propostas.
O Brasil tem diante de si um caminho longo e decisões muito difíceis para evitar um colapso ainda pior do que a crise que vivemos desde 2014. A população está cansada de tanta briga e gritaria; precisa ter alguma esperança novamente. A cacofonia histérica e emburrecedora das redes sociais não pode ter a última palavra. Merecemos um país que funcione. E, para isso, será preciso governar para todos; com o sistema para torná-lo melhor, e não numa negação ineficaz dele. Se este momento não servir como um sinal da necessidade de conciliação; se mesmo assim optarmos por candidatos que polarizem a sociedade; bem, vamos seguir colhendo o que plantamos.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 11/09/2018