Não elegemos ideias nem propostas; elegemos pessoas. O candidato eleito pode, a partir do dia da posse, implementar uma agenda oposta àquela que propôs durante a campanha. Foi o que Dilma fez em 2015. Na maioria dos casos, nada tão radical acontece, mas há sempre um hiato entre o que foi prometido na campanha e o que o representante faz ou busca fazer no mandato. As propostas mudam. O que parecia bom num momento pode se revelar um erro em outro. Se um adversário aparece com uma boa ideia, nada mais fácil do que copiá-la.
É equivocado, portanto, pensar na eleição como discussão e comparação de propostas. Essa discussão, mais do que tudo, permite conhecer um pouco melhor como funciona a cabeça dos candidatos e suas prioridades, e não fazer um juízo detalhado entre diferentes planos. Eleitoralmente, de nada adianta o candidato ter as melhores propostas se a pessoa dele não consegue cativar e conquistar a confiança do eleitor. Dito isso, não tem nada melhor para o candidato do que deixar de ser visto como uma mera pessoa e passar a ser um símbolo, uma ideia, algo maior que o indivíduo de carne e osso que ele é. Lula já fez essa metamorfose. Bolsonaro também. Quando os discutimos, não raro falamos daquilo que eles representam, e não das pessoas (um tanto decepcionantes) que residem sob o símbolo.
Bolsonaro, por exemplo, parlamentar por quase 30 anos, foi uma figura basicamente inútil no Congresso. Suas declarações revelam o mais completo vazio de conteúdo. No entanto, por simbolizar algo mais —uma luta contra o espectro da esquerda— tem tido a adesão de uma parte relevante do eleitorado. Da mesma forma, Fernando Haddad, que talvez algum dia prometesse algo de próprio, algum tipo de renovação do PT, tornou-se uma figura nula, um capacho de Lula, que representa um vago sentimento de justiça social e acolhimento.
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A política real é uma coisa difícil e sem graça: comparar prós e contras de pessoas. Quando se traveste de luta entre ideias puras e valores abstratos, a comparação é impossível e caímos numa guerra de ilusões. Bolsonaro é o único candidato de direita e Haddad o único legítimo representante da esquerda. O resto são inimigos declarados ou, ainda pior, traidores. Acreditamos lutar por ideias, mas estamos a serviço de pessoas.
Nenhuma pessoa merece adesão cega. Guiar-se pelo símbolo é válido apenas na medida em que não nos deixamos hipnotizar por ele, esquecendo as realidades concretas por baixo. Quando o símbolo fala mais alto, perdemos nosso juízo. A mídia, quando não adula seu candidato, é fake news. Se a Justiça o condena, é vendida. Se as pesquisas não indicam sua vitória, são mentirosas. Se as urnas não mostrarem o resultado desejado, estão fraudadas. A mente que pensa assim é impermeável: neutraliza de partida qualquer via possível de fatos ou argumentos contrários.
Nesse estágio, qualquer tentativa de convencimento apenas reforça sua adesão à causa. Argumentos contrários são ataques à sua identidade. Para o candidato, isso é excelente. Não há nenhuma baixeza que ele possa cometer que tire a adesão cega de seu eleitor. Ele é visto como uma ideia, um valor, que está acima das fraquezas humanas.
Tirada a camada de fantasia ideológica que move paixões, contudo, resta o representante e sua equipe tendo que gerir o Estado, negociar agendas concretas (e jamais os valores genéricos a que apelaram na campanha) e fazer escolhas. Será que ele era o melhor para esse trabalho?
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 25/09/2018