O Podcast Rio Bravo conversa com Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso (2001-2002) e professor livre docente da Universidade de São Paulo. Na entrevista, Lafer, um dos principais estudiosos da obra da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) no Brasil, resgata o pensamento da autora numa perspectiva bastante particular, afinal, ele foi aluno de Arendt quando fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos (Cornell University) na década de 1960. Ao falar daquele período, o entrevistado observa algumas características da trajetória de Hannah Arendt: “os conceitos e as categorias que ela criou continuam sendo relevantes para entender o século XXI”. Recentemente, Celso Lafer lançou uma versão atualizada de “Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder” (Editora Paz e Terra), uma coletânea de ensaios a propósito da vida e da trajetória intelectual de Hannah Arendt. Ouça no player abaixo:
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Rio Bravo – Para a gente começar, professor, para quem ainda não teve a oportunidade de travar contato com o livro, conta um pouco da sua relação com a Hannah Arendt e a importância que ela teve na sua trajetória intelectual.
Celso Lafer – Hannah Arendt é, hoje em dia, considerada uma das grandes pensadoras do século XX. Ela é um clássico e um clássico, como dizia o Ítalo Calvino, nunca termina de dizer o que tem para dizer. Atualmente, a obra de Hannah Arendt continua dizendo coisas que são relevantes para entender o mundo dentro do qual estamos inseridos. Ela é um clássico no sentido também em que ela preenche os três requisitos de um clássico que Bobbio formulou. Ela é uma intérprete autêntica do seu tempo, ou seja, do século XX e da Era de Extremos que gerou e propiciou, com todos os seus desdobramentos. É uma obra que continua suscitando contínuas interpretações e reinterpretações, sucessivos estudiosos de Hannah Arendt. Várias gerações de Hannah Arendt encontraram na obra dela estímulos para pensar a pauta de problemas com os quais se preocupavam. E, finalmente, os conceitos e as categorias que ela criou continuam sendo relevantes para entender o século XXI, que é também outro atributo de um clássico. Eu fui aluno da Hannah Arendt na Universidade de Cornell, onde eu fui fazer a minha pós-graduação em Ciência Política. Isso foi em 1965. Naquela época, ela era uma pensadora conhecida, mas não tinha ainda estes atributos de um clássico que eu estou mencionando a você. Eu fiz um curso com ela, um curso muito interessante, que se chamava “Experiências políticas do século XX”. O que ela procurou mostrar neste curso, que para mim foi de grande iluminação? Ela começa dizendo que ela ia tratar de uma biografia imaginária de alguém que nasceu no final do século XIX e começou a viver no início do século XX. E dizia ela: “Não vou tratar de uma grande figura política ou intelectual, vou tratar de uma pessoa com sensibilidade que se viu afetada pela política e pelas movimentações da política, independentemente da sua vontade ou do seu desejo. Foram fatos que impactaram a vida dessas pessoas”. O que, diga-se de passagem, ela está evocando aquilo que foi muito típico da trajetória dela, mas muito típico da trajetória de tantas pessoas que se viram afetadas por isso. O seminário — era um seminário, eram poucas pessoas, eram 20 pessoas — era construído da seguinte maneira: ela fazia uma lista de leituras dos livros que precisavam ser estudados, ela atribuía a cada um de nós uma exposição sobre estes livros e depois ela amarrava aquilo a partir da visão dela. E o interessante nessa maneira pela qual ela dava as aulas dela era a combinação de textos políticos, de obras de arte, de romance, de filosofia. Entrava Malraux, entrava Sartre, entrava Faulkner, entrava Hemingway, entrava Thomas Mann, ao lado de outros textos mais conhecidos, voltados para análise histórica e política do século XX. E eu creio que a obra dela é, essencialmente, uma obra voltada para a tentativa de julgar e avaliar os assuntos que ela examinou — o totalitarismo, a revolução, a violência, a desobediência civil, para dar alguns exemplos.
Rio Bravo – Tendo em vista o que Hannah Arendt elaborou no campo da filosofia política e a partir desse relato que o professor nos ofereceu, como é que a questão da narrativa pode nos ajudar a propósito das tensões que nós vivemos? Ela, inclusive, escreve a respeito disso e o senhor coloca no livro um pouco dessas questões.
Celso Lafer – A experiência política só pode ser transmitida se ela for discutida e divulgada, e ela só pode ser bem discutida e bem divulgada se ela for narrada, então a narrativa tem um papel esclarecedor daquilo que é o papel da experiência. E o papel da experiência é, sem dúvida nenhuma, uma dimensão importante de natureza epistemológica que acompanha a reflexão dela. Experiência vem do Latim experiri, ensaiar, testar, por a prova, tanto daquele que experimenta quanto daquilo que é experienciado. E é no jogo da relação entre quem experiencia e aquilo que é experienciado que a narrativa emerge e, se ela for bem-sucedida, ela é esclarecedora.
Rio Bravo – A certa altura do primeiro texto do livro, o senhor escreve que havia um razoável desconforto em relação a uma pessoa que não se enquadrava nos cânones políticos usuais — direita e esquerda, liberal e conservadora. Como é que o senhor avalia essa urgência em pautar a conversação política de acordo com esses termos nos dias de hoje?
Celso Lafer – Ela mesma dizia: “I somehow don’t fit”. “Eu não me enquadro” ou “eu não sou enquadrável”. Eu tento pensar pela minha própria cabeça, como ela dizia, e o desafio é o de pensar sem o corrimão de conceitos consagrados. É como ela dizia: “thinking without a balustrade”, sem o apoio que o corrimão dá. É uma imagem, como todas as imagens da Hannah Arendt, muito relevantes. Se você sobe ou desce uma escada, se você tem um corrimão a chance de você cair é menor. Se você não tem um corrimão, a chance de você cair é maior. Ela teve a ousadia de pensar sem o corrimão de conceitos consagrados e é por isso que ela dizia: “Olha, eu não sou nem de esquerda nem de direita, como muitos gostariam de me atribuir uma etiqueta. Eu também não sou uma liberal, nem uma conservadora. Eu também não sou uma pensadora que padece de nostalgia helênica. Não, eu procuro lidar com as circunstâncias com as quais eu me confronto e me defronto”. Então, naturalmente, a experiência dela explica também o desenvolvimento da obra dela e é por isso, aliás, que a obra dela permite tantas interpretações distintas. Eu discuto um pouco isso, tratando da recepção da obra dela, porque, naturalmente, há os que são os colegas da Hannah Arendt, os seus companheiros de geração, que refletiram sobre a obra dela. O Ortega dizia que toda geração é um tipo de sensibilidade vital. A análise, por exemplo, do Hans Jonas é uma análise dos companheiros de geração dela. Depois, você tem a geração dos que foram ou de uma maneira ou de outra alunos dela. Quer dizer, a primeira geração dos intérpretes dela, entre os quais, por exemplo, a Margaret Canovan, que foi a que escreveu o primeiro livro sobre Hannah Arendt, livro completo, e que tem um grande livro sobre o pensamento dela e é editora da segunda edição da “Condição Humana”. E depois você vai tendo sucessivas leituras. Essas leituras também respondem as perguntas dos seus intérpretes, então eu penso que há também um certo desconforto que vem do fato de ela ter um pensamento que não comporta simplificações e que não comporta enquadramentos fáceis. É por isso que eu digo — você terá visto no prefácio do meu livro, que é a terceira edição — que há um work in progress em torno da obra dela, e esse work in progress é uma tentativa minha permanente de lidar com a sugestividade infinita do pensamento dela.
Rio Bravo -Num momento em que se discute tanto a questão dos refugiados no Brasil e, de modo geral, na Europa, como é que a posição da Hannah Arendt pode nos autorizar a refletir acerca desse tema?
Celso Lafer – Nesse capítulo específico, eu acho que a obra dela é paradigmática, porque o que ela mostra? É que houve uma dissociação entre os direitos humanos e os direitos dos povos. Essa dissociação trouxe a existência de minorias religiosas, étnicas, linguísticas que não estavam mais à vontade dentro da organização do Estado com a derrocada dos impérios multinacionais na Europa, que era o Império Austro-Húngaro, que era o Império Czarista e que era o Império Otomano. No caso da derrocada do Império Czarista, você teve a unificação promovida pela afirmação do comunismo, mas se você olha o que aconteceu depois da desagregação da União Soviética você vê que isto trouxe também a desagregação daquilo que era um Estado de proporções muito grandes e que obedeceu ao princípio das nacionalidades. No caso do Império Otomano, você tem também o que aconteceu no Oriente Médio, que é fruto desta desagregação de uma unidade que existia anteriormente e com a construção complexa de Estados e de nacionais onde esse problema passou a se colocar. E no caso do Império Austro-Húngaro, você tem então as minorias que surgiram. Bom, tudo isso é um prefácio para aquilo que a Hannah Arendt discute quando ela diz que, com essa cultura, você tem os expulsos da trindade Estado, povo e território, que são os displaced people, são os refugiados, que não encontram lugar no mundo e que são os que perderam, no primeiro momento, a sua língua, a sua profissão, a sua residência, a sua ideia de que pertencem de alguma maneira a um lugar no mundo. Eles se tornaram indesejáveis, em geral, no mundo inteiramente ocupado e porque eram indesejáveis foram os que acabaram levando a sua vida sem os benefícios do princípio da Legalidade. O que ela diz é o seguinte: não é que os refugiados não tivessem direitos humanos, é que eles não tinham acesso ao benefício da legalidade, então eles ficaram deslocados no mundo e terminaram no campo de concentração. Se você olha a situação atual, é evidente que você tem uma multiplicação numérica extraordinária de refugiados e estes são os expulsos da trindade Estado, povo e território, que são os que são vítimas dos fundamentalismos, das perseguições, da xenofobia, da falta de oportunidades. Eu creio que o que ela colocou sobre esse assunto continua na ordem do dia. Ela também diz que a única maneira de você assegurar o direito a ter direitos é você ir além do Estado e ter uma tutela internacional, e eu acho que justamente a Hannah Arendt é uma das fontes materiais da internacionalização dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos justamente fala: o direito a ser reconhecido como pessoa, o direito à nacionalidade, o direito a procurar refúgio. E a ACNUR, que é a grande agência da ONU dedicada aos refugiados, se incumbe de dar aos refugiados não só cuidados e tratamento humanitário, mas exercer uma proteção diplomática daqueles que não têm um Estado que possa cuidar desta dimensão, que em princípio cabe à competência pessoal do Estado. O Estado tem, além de uma competência territorial, uma competência pessoal em relação aos seus nacionais. Quando você teve agora as crianças separadas das mães nos Estados Unidos, o Brasil se dedicou a procurar cuidar desta situação dos seus nacionais, exerceu a proteção diplomática. Agora, em relação aos refugiados, quem faz isso é o ACNUR, que é uma coisa importante, mas, naturalmente, diante da escala do problema, isto é pouco perto do drama que nós enfrentamos. O problema da Venezuela mostra a contundência deste assunto para o Brasil. Acho que o Brasil tem procurado dar abrigo e faz bem, e é o que devia fazer, mas naturalmente isso também traz as suas dificuldades. Precisa de uma ação do governo federal para poder distribuir esses refugiados pelos estados brasileiros onde eles possam ter condições de melhor acolhimento e de recuperação das suas condições de vida. E, a meu ver, também é um assunto que merece um tratamento internacional, pelo menos no âmbito da nossa região, o que inclui cooperação com a Colômbia e o Equador.
Rio Bravo – Quais são os trabalhos que o senhor identifica hoje como sendo herdeiros da tradição da obra de Hannah Arendt?
Celso Lafer – Eu procuro mostrar aqui também, num dos capítulos da entrevista que eu dou ao Eduardo Jardim, que há um grupo importante de estudiosos que vem se dedicando à obra de Hannah Arendt, com muita qualidade, com muita originalidade e que são herdeiros desta obra de Hannah Arendt. Eu não quero singularizar A, B ou C, mas o Eduardo Jardim é um exemplo de um estudioso de Hannah Arendt. Ele escreveu um livro sobre ela que eu acho muito interessante e escreveu um livro que eu comento aqui, que é sobre a relação entre Hannah Arendt e Octavio Paz, que é muito interessante. Eu acho que é um ensaio muito instigante, porque ele, assim como outros, tem procurado ver quais são as convergências dela com os grandes pensadores do século XX. Eu mesmo mostro que apesar da pouca simpatia mútua que existia entre o Isaiah Berlin e a Hannah Arendt, há mais coisas em comum do que eles reconheceriam, porque eles chegam… Inclusive, a expressão “thinking without a balustrade” é uma que os dois usam sem saber que ela foi usada pelo outro. E a história do juízo político que o Isaiah Berlin discute tem relação com o que ela fala sobre o juízo político.
Rio Bravo – Uma última questão. Em um dos últimos textos do livro, na confluência entre o pensar e o agir, o professor articula a leitura que faz da obra da Hannah Arendt com a sua própria experiência como chanceler do governo Collor. Na sua avaliação, qual é a importância dessa reflexão? E aí eu estou somando uma outra ocasião, o professor também foi chanceler. Qual é a importância desse pensar e agir?
Celso Lafer – Eu procuro mostrar nesse ensaio e também num outro ensaio recente que saiu em Inglês no primeiro volume de uma revista chamada Arendt Studies, dizendo que, evidentemente, você tendo sido aluno dela, naturalmente, acaba sendo marcado pela reflexão dela. Acho que uma das coisas, por exemplo, que me marcou na condução da Conferência do Rio de 92, que foi no período Collor, a ideia dela de que a Terra é o habitat da condição humana e que, naturalmente, ela estava sendo posta em questão pela precariedade que a ação humana estava trazendo para o equilíbrio dos ecossistemas que sustentam a vida na Terra. Então, a importância do tema da sustentabilidade e do meio ambiente teve, em surdina, esta preocupação. Também a ideia do direito a ter direitos, a ideia de uma política internacional de direitos humanos e o papel do Brasil nesse sentido foi influenciado por esta reflexão da Hannah Arendt. Não apenas por ela, porque a Constituição também fala no seu artigo 4, que trata dos princípios, do tema da prevalência dos direitos humanos. Depois, sempre me impressionou muito a ideia dela de que é pela ação conjunta que você gera o poder e que é uma das inovações do pensamento dela. Ela está preocupada não com o exercício do poder, mas com a geração do poder, com o estoque de confiança que vem da ação conjunta geradora do poder. Por exemplo, no plano internacional isso aparece quando você consegue pela ação conjunta, através de coligações de geometria variável, afirmar-se no plano multilateral. Acho que, por exemplo, as Diretas Já foram uma expressão de geração de poder da cidadania, que contribuiu para a redemocratização do país. Acho a análise que ela faz da violência muito interessante, porque o que ela diz? “A violência não cria o poder como ação conjunta, ela destrói o poder.” E é por isto que é preciso levar em conta o que significa esta profusão da violência no mundo contemporâneo, que destrói o poder e não gera poder. O terrorismo, por exemplo, destrói o poder. Ele não gera poder, gera medo.
Rio Bravo – Professor Celso Lafer, muito obrigado pela sua participação, pela sua entrevista aqui ao Podcast Rio Bravo.
Celso Lafer – Agradeço. Agradeço a oportunidade de ter discutido um pouco a obra da Hannah Arendt e eu penso que vale a pena o esforço de parar para pensar o que ela tem a dizer e como ela nos ajuda a esclarecer os problemas que enfrentamos.
Fonte: “Rio Bravo Investimentos”