A decisão da Câmara de flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) abre brecha para que pelo menos 1.752 municípios, ou 31,4% do total do país, descumpram sem punição os limites legais para gastos com pessoal. O número inclui 1.163 cidades que já ultrapassam o teto de 60% das receitas com esse tipo de despesa e 589 em situação prudencial (quando várias medidas de controle já precisam ser adotadas). O impacto da proposta foi calculado por técnicos da Câmara dos Deputados e compilado pelo gabinete do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ).
No Estado do Rio, onde todos os 92 municípios recebem royalties de petróleo, 49 estão na mesma situação, segundo levantamento do GLOBO feito com base em relatórios do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Quinze já ultrapassaram o teto, e 34 estão em situação prudencial. Os dados consideram o limite previsto para o Executivo (54%) – os 6% restantes devem ser respeitados pelo Poder Legislativo.
A mudança, aprovada na noite de quarta-feira, determina que prefeituras que sofrerem queda de 10% na arrecadação por causa de repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) ou de royalties de petróleo fiquem isentas das sanções da LRF, principal balizador de saúde fiscal do país. Além disso, abre espaço para que administradores que estão em regime prudencial possam abrir novas despesas com funcionários públicos.
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Hoje, a cidade que ultrapassa os limites da LRF deixa de receber os recursos da União e também não pode pegar empréstimo com garantia do governo federal. Além disso, a punição legal para administrador público que aumentar a folha acima do permitido pode chegar até mesmo a quatro anos de cadeia.
A mudança seguiu para sanção do presidente Michel Temer. Segundo integrantes da equipe econômica, a recomendação do Ministério da Fazenda será pelo veto da proposta.
Para Pedro Paulo, a medida não seria aprovada no ano que vem, quando mais da metade dos parlamentares será trocada pelos eleitos em outubro:
– Estamos vivendo o período de um Congresso manco, como diz aquela expressão americana lame duck (pato manco, em inglês).
Para Fábio Klein, economista da Tendências Consultoria, a mudança na legislação estimula o afrouxamento da responsabilidade fiscal:
– É um mau sinal, que chegou no apagar das luzes e enfraquece a LRF. É a surpresinha negativa, que funciona como uma contrarreforma. Exemplo da cultura brasileira de criar exceções à regra. O que foi aprovado tende a criar uma exceção à regra e estimula o gestor público a ficar pouco responsável. Independentemente das condições que levaram ao desequilíbrio, o que importa é a regra.
A mudança também terá, segundo o economista, efeito perverso sobre a relação entre União e municípios:
– A lei fará com que a União se sinta mais confortável em conceder incentivos fiscais, uma vez que os prefeitos, que são as maiores fontes de pressão contra esse tipo de política, serão menos pressionados a cumprir a LRF.
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A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) pondera, porém, em nota, que “a lei não liberou os municípios a gastarem”. O argumento é que ela estabelece critérios que contemplarão um número limitado de municípios. Segundo a Confederação, mesmo no auge da crise, entre 2016 e 2017, a queda no repasse global do FPM foi de só 3,73%. Este ano, os repasses cresceram até agora 3,9%.
“Assim, o projeto poderá ser efetivamente aproveitado pelos poucos municípios que sofreram perdas consideráveis com royalties”, disse a CNM, acrescentando que a arrecadação com royalties este ano já subiu 36,8%.
De fato, no caso do Rio, todas as prefeituras que gastam acima do teto de 54% com pessoal registraram aumento de receita com royalties e com repasses do FPM nos primeiros quatro meses de 2018, na comparação com o mesmo período do ano anterior — ou seja, não poderiam se beneficiar das alterações à LRF.
No caso dos royalties, a melhora aconteceu porque a cotação do petróleo — referência para o pagamento — vinha crescendo. Já o FPM é influenciado positivamente, por exemplo, pela redução de subsídios tributários pela União e aumento da arrecadação.
Dependência de repasses
Mesmo assim, especialistas argumentam que as mudanças à lei representam um risco.
– No cenário atual, em que temos aumento de FPM e royalties, a mudança não tem muito efeito. Mas, no longo prazo, se for mantida a redução no preço do petróleo que temos visto recentemente, essa pode ser uma justificativa para os prefeitos prestarem uma má gestão fiscal – explica Jonathas Goulart, coordenador de estudos econômicos da Firjan, federação que reúne as indústrias do Rio. – A mudança legaliza a má gestão do orçamento.
Ao mesmo tempo, diz ele, a alteração não resolve o problema fiscal dos municípios:
– O problema fiscal é fruto da elevada rigidez orçamentária, gerada sobretudo por gastos com pessoal e inativos. A economia reduziu seu tamanho, só que o setor público não consegue reduzir seu tamanho na mesma magnitude. Esse é o problema a ser encarado.
De acordo com analistas, para equilibrar as contas, prefeitos em dificuldade devem conter gastos, suspender concursos públicos, não aumentar salários, diminuir horas extras e evitar novas despesas. Especialistas defendem também mudanças nas estruturas das carreiras no serviço público. Uma das medidas seria o fim das promoções automáticas.
François Bremaeker, economista e gestor do Observatório de Informações Municipais (OIM), pondera que o problema está no desenho atual do pacto federativo:
– Hoje, os municípios gastam R$ 34 bilhões com despesas que não deveriam custear, como a manutenção de delegacias e até da merenda de escolas estaduais que funcionam em seus territórios.
Segundo ele, a situação piora no interior, onde a arrecadação de ISS e IPTU é minúscula, e os municípios dependem de transferências:
– Parte importante vem das transferências voluntárias, que estão diminuindo. Assim, a verdade é que muitos estão ficando apertados.
Fonte: “O Globo”