A restrição dos espaços da sociedade civil tem sido uma obsessão de governos autoritários ou com tendências autocráticas. Desde o governo Hugo Chaves, na Venezuela, o trabalho das ONGs vem sendo objeto de uma série de restrições legais e políticas. Apenas as organizações do Poder Popular, que têm suas atividades autorizadas e coordenadas pelo governo, podem receber recursos públicos e participar das políticas públicas.
No vizinho Equador, o então presidente Correa também criou um ambiente hostil às organizações da sociedade civil, que hoje se encontram obrigadas a fornecer atas de reuniões, relatórios financeiros ou ainda facilitar o acesso de funcionários do governo para inspecionar suas atividades. Na Nicarágua, o presidente Ortega tem determinado o fechamento de diversas organizações, usando inclusive a legislação antiterrorismo.
Restrições semelhantes têm sido impostas pelos governos da Rússia, de Vladimir Putin, da Turquia, de Recep Tayyip Erdogan, ou da Hungria, do primeiro ministro Viktor Orban. Este último tem promovido uma verdadeira perseguição ao financista e filantropo George Soros, eleito personalidade do ano pelo jornal Financial Times, e suas iniciativas, como a Open Society Foundations, que teve que deixar o país em 2018.
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Neste contexto, em que governos não democráticos de esquerda e direita buscam restringir o espaço da sociedade civil, causa preocupação a decisão da Presidência, precedida da proposta de pôr fim ao ativismo, de atribuir à Secretaria de Governo, por intermédio da medida provisória 870, a responsabilidade de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.
Desde Tocqueville, ícone do pensamento liberal do século 19, aprendemos que a existência de uma sociedade civil plural, vibrante e autônoma é fundamental para a sobrevivência da democracia. Não é por outra razão que constituições liberais e democráticas asseguram as liberdades de associação, expressão e manifestação. São essas liberdades que permitem a existência dos mais variados grupos e a defesa dos mais distintos interesses e ideologias, que vão da TFP (Tradição Família e Propriedade) ao MST (Movimento Sem Terra), passando pelo Instituto Millenium, fundado pelo ministro Paulo Guedes, que “promove valores e princípios que garantem uma sociedade livre”, ou o Instituto Paulo Freire, que tem por missão “educar para transformar”.
De acordo com o artigo 5º., incisos XVII, XVIII e XIX, de nossa Constituição, “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”; sendo que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento” (grifo meu); além do que “as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas… por decisão judicial…”
As ONGs encontram-se, assim, condicionadas apenas à licitude de seus fins e legalidade de suas condutas, podendo ser fiscalizadas e eventualmente sancionadas se desrespeitarem a lei. Para isso há Ministério Público, Receita Federal, Tribunais de Contas e, por último, a Justiça.
Não é autorizado ao governo, portanto, “supervisionar” ou “coordenar” as atividades das ONGs, a não ser que esteja disposto a afrontar a Constituição que jurou respeitar e inclinado a transformar a sociedade civil em sociedade servil.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 05/01/2018