‘A distância é a alma da beleza”, disse certa vez Simone Weil. Vale para pessoas e para países. “De perto, ninguém é normal”, filosofou Caetano por aqui. Nem sempre as pessoas e os países são como gostaríamos que fossem — quase nunca são.
Depois da eleição de Mauricio Macri, escrevi sobre as perspectivas que então se abriam para os hermanos . Por que o que acontece ao sul é importante para o Brasil? Primeiro, pela importância que a Argentina tem para nós: ela responde por 6 % de nossas exportações, e é nosso principal sócio regional. Portanto, o que acontece com nossos vizinhos tem que nos interessar. Segundo, pelo contraste com o governo Cristina Kirchner, o que, considerando os paralelos ideológicos entre os países, tem consequências no “mercado de ideias” local: quem é crítico da política econômica argentina atual está associado à corrente favorável a Cristina, de modo que o destino de Macri terá consequências sobre o nosso debate. E, terceiro, porque é um governo de minoria; portanto, ver como sobrevive uma administração nessas condições é uma forma de nos ajudar a pensar o que pode acontecer com o Brasil no contexto de um governo minoritário no Congresso e com o desafio de montar uma coalizão que funcione.
Meu relativo otimismo inicial acerca dos vizinhos em 2016 se baseava em um conjunto de elementos:
a) o governo tinha uma postura acerca da necessidade da Argentina de se reposicionar diante do mundo, após um longo período de fechamento, que era adequada para o melhor aproveitamento das potencialidades do país;
b) Macri tinha tido uma boa preparação para a tarefa, tendo sido prefeito ao longo de duas gestões bem-sucedidas;
c) a escolha inicial dos principais nomes para a equipe — Prat Gay na Economia e Sturzenegger no Banco Central — parecia ter sido impecável;
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d) a saída do “cepo cambiário” — um esquema de controle cambial que gerava um mercado paralelo com ágio elevado — tinha sido conduzida brilhantemente.
Em 2017, porém, passei uma semana no país e, vendo as coisas mais de perto, conversando com amigos e sentindo a temperatura in loco , pude constatar que a realidade era preocupante. Explico os principais pontos delicados que identifiquei na ocasião:
a) a economia argentina não sofreu um processo de ajuste nos dois primeiros anos do governo. A inflação se manteve altíssima, o déficit público continuou sendo inicialmente similar ao nosso, e o déficit em conta corrente foi da ordem de 4% do PIB. Com esses números no início de um processo de crescimento, qualquer projeção feita três ou quatro anos à frente, com o histórico de crises de nossos vizinhos, se tornava azeda;
b) as decisões no âmbito econômico ficaram muito fragmentadas. Não havia a figura do ministro de Economia. Após a saída de Prat-Gay, cada autoridade específica cuidou de seu próprio canto. Com isso, o ministro que formalmente o substituiu praticamente se transformou no começo num secretário de Orçamento, assunto importante mas que é apenas um dos temas com os quais um ministro deve lidar e com o qual, exatamente por não ter muita força na época, não conseguia ser muito duro nas negociações que sempre se colocam em torno da questão;
c) Macri dava a impressão de não gostar muito de ter por perto pessoas que apontassem os problemas das suas ações. Não por acaso, os economistas mais conhecidos pela independência de suas opiniões — Prat-Gay e Melconian — acabaram fora do governo;
d) ele tinha um problema persistente de imagem, pelas suas origens, que dificultava a possibilidade de funcionar como fator de aglutinação dos argentinos.
Em 2018, tudo mudou, com a corrida ao dólar, a disparada inflacionária e o acordo com o FMI, que implicou um ajuste drástico e trouxe um desgaste enorme. Nada disso impede que, devido à divisão do peronismo, ele possa vencer as eleições de 2019. Se isso ocorrer e tendo feito o ajuste, a próxima poderá ser uma boa década para a Argentina. Vencer eleições no meio de um ajuste, porém, será um desafio e tanto.
Fonte: “O Globo”, 12/02/2019