“Dói viver depois que alguém [que amamos] morreu”, escreveu Michelle Obama, ao descrever os sentimentos relacionados à morte de seu pai, em recente autobiografia, “Becoming Michelle Obama”.
Ao ler, cada um de nós provavelmente entende o que ela afirma e consegue empatizar com a sensação. Afinal, compartilhamos a mesma condição humana, a despeito de diferenças de nacionalidade, raça, gênero ou orientação sexual.
É justamente a esta condição humana compartilhada que a Declaração Universal dos Direitos Humanos se refere quando, no artigo 1, estabelece que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. É verdade que foi necessário o movimento dos direitos civis da década de 1960 e a liderança ativa de Martin Luther King para nos lembrar que as regras de convivência social não devem negar direitos ou tratar pessoas como “menos iguais”.
Em tempos de polarização política e discursos que negam o reconhecimento de cidadania civil a grupos invisíveis no cotidiano, embora destacados em páginas policiais, é urgente relembrar a septuagenária declaração, nascida da tragédia da Segunda Guerra Mundial.
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As expressões de ódio hoje tão presentes em debates em redes sociais escondem um medo profundo e a busca de um líder que, para nos salvar, empregue ou autorize violência física no combate a perigos percebidos, reais ou não. E, neste contexto, a mera insinuação de anuência com intenções violentas pode levar a atos cruéis.
Não é necessário lembrarmos da Noite dos Cristais de 1938, os pogroms na Rússia czarista ou a Revolução Cultural na China para nos darmos conta do que turbas violentas são capazes de fazer em momentos de catarse. Ou mais recentemente, a prisão de Asia Bibi, uma cristã paquistanesa que ousou beber um gole d’água antes de compartilhar a jarra com colegas de trabalho, o que lhe rendeu uma acusação de blasfêmia e nove anos de prisão. Em todos os casos, a violência ocorreu num clima de autorização oficial.
O que pode evitar atrocidades e desrespeito seletivo a direitos humanos? A vigilância da sociedade civil. No regime militar, sempre que havia denúncias de torturas ou prisões sem amparo da lei, dom Paulo Evaristo Arns atuava evitando mortes e ajudando familiares.
A ideia de criar uma comissão com o nome do arcebispo, que ajude a dar visibilidade e acolhimento a casos de graves violações de direitos humanos e a evitar retrocessos na área, fez-me muito sentido. É com muita honra que passo a integrar o grupo de fundadores da Comissão Arns, para que nunca mais se confunda ordem com injustiça nem segurança com perda de dignidade humana.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 22/02/2019