O documentário “A Terra é Plana” (“Behind the Curve”, Daniel J. Clark, 2018), disponível no Netflix, não apenas sacia nossa curiosidade mórbida por um movimento de crenças bizarras (no caso, de que nosso planeta não é uma esfera e sim um disco). Ele nos mostra a dimensão política da crença humana e o quão pouco somos guiados pela razão.
No Brasil, ainda podemos considerar a esfericidade da Terra como uma verdade óbvia. Podemos buscar entender os terraplanistas, portanto, sem levar a sério o mérito de suas teses. Se eles crescem e se organizam, não é pela racionalidade dos argumentos. A explicação tem que estar em algum outro mecanismo psicológico, que guardará lições sobre muitos outros movimentos.
Primeiro ponto notável: as redes sociais foram condição necessária para o terraplanismo florescer. Nelas, pessoas comuns podem gerar seu conteúdo e chegar a milhões de outras sem passar por nenhum crivo da ciência institucional. Comunidades se formam e se retroalimentam, fortalecendo o sentido de uma causa comum e convertendo pessoas que, não fosse pelas redes, jamais questionariam o formato da Terra.
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Segundo ponto: os terraplanistas falam a língua do homem comum, enquanto a linguagem dos cientistas lhe é inacessível. “Science just throws math at us”, diz um dos expoentes do movimento, contando vantagem. E ele está certo. Alguns dos cientistas ouvidos pelo documentário, por sua vez, lutam para não transparecer o óbvio desprezo que sentem pelo terraplanismo; o que só fortalece nos membros o sentimento de que o sistema os persegue.
Afinal, é impossível acreditar que a Terra é plana sem, ao mesmo tempo, acreditar que toda a comunidade científica, as universidades, o governo e a mídia estão metidos numa conspiração para nos enganar sistematicamente. Sendo assim, nenhum argumento vindo da comunidade científica será persuasivo.
As crenças humanas não se destinam apenas a conhecer a verdade; cumprem também uma função social de coesão grupal e sentido de pertencimento. Somos apresentados a pessoas que se sentiam sozinhas e excluídas. Em muitos casos, o terraplanismo só acentuou o isolamento da família, mas apresentou uma comunidade na qual se sentem valorizadas e na qual têm o reconhecimento que lhes era negado.
Pois as energias dos terraplanistas não estão no debate científico. Seus olhos brilham é com a política: querem ocupar espaços (no currículo da educação pública, por exemplo) e se fazer ouvir. Organizam eventos, militam nas redes, veem-se como um coletivo em uma luta heroica contra um inimigo maligno.
Ninguém se convence racionalmente de que a Terra é plana e por isso passa a rejeitar o sistema. O mecanismo é justamente o inverso: a pessoa já queria, por algum motivo, rejeitar o sistema e, para isso, argumentos baratos fornecem uma justificativa fácil. Não são, nisso, menos racionais do que nós. Afinal, não temos a prova da maior parte de nossas crenças (entre elas, a esfericidade da Terra); elas dependem de nossa confiança nas instituições que nos rodeiam. É isso que está em jogo.
Limitar a expansão de seitas em um mundo no qual a informação circula livremente (e é bom que circule, não queremos voltar atrás) é um dos desafios deste século. O terraplanismo exige um salto de fé tão grande que provavelmente encontrará limites naturais. Comunidades de crenças menos absurdas embora também falsas— podem ir mais longe e fazer estragos maiores.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 12/03/2019