A história da Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada em maio de 2000, passa pela economista carioca Selene Peres Nunes. Graduada na UFRJ, mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB) e com um doutorado concluído neste ano na mesma instituição, na área de contabilidade, ela conhece como poucos os descaminhos das contas públicas no Brasil.
Ao se debruçar sobre o caso dos governos estaduais para formular sua recente tese de doutorado, Selene Peres encontrou um sistema de controle externo com a credibilidade corroída pelos inúmeros arranjos executados para burlar os limites da lei.
Os tribunais de contas estaduais se tornaram, ao longo do tempo, com exceções honrosas, um instrumento político para acomodar as pressões por gastos exacerbados, que terminaram por levar muitos estados da Federação a decretar calamidade financeira.
O que deu errado com a Lei de Responsabilidade fiscal é uma pergunta que ela consegue responder de forma clara, não só pela experiência técnica no exercício de funções no Tesouro Nacional como também pela trajetória acadêmica. Participou ainda das negociações com o Congresso Nacional para viabilizar a aprovação da LRF.
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Naquela época, era possível identificar de forma cristalina o que ela chama de uma “coalizão pró-gastos” dentro do Congresso Nacional, que se opôs aos rigores da legislação em favor da responsabilidade fiscal. O mesmo quadro pode ser visto agora, segundo ela, no caso da reforma da Previdência.
A grande lição é que a luta pela preservação dos recursos públicos e pela promoção do equilíbrio fiscal não se esgota na aprovação de uma nova lei, por mais meritória que seja. Os passos seguintes desse processo passam pelo Judiciário e pela aplicação prática da legislação. Em todas essas etapas, há riscos e dificuldades.
A entrevista que Selene Peres concedeu ao site Capital Político destrincha aspectos áridos, mas fundamentais para se entender a gravidade da situação a que o Brasil chegou no setor público. Os principais trechos estão a seguir.
Capital Político: A Lei de Responsabilidade Fiscal existe há quase 20 anos. Temos hoje sete estados da Federação em estado de calamidade financeira, o Rio de Janeiro dentro de um programa de recuperação fiscal e outros que também querem se habilitar. O que deu errado na LRF?
Selene Peres Nunes: Na minha tese de doutorado, no primeiro capítulo, eu me faço justamente essa pergunta. O que aconteceu? Havia inicialmente a expectativa de que a Lei de Responsabilidade Fiscal faria uma mudança comportamental de todos os entes públicos e induziria o equilíbrio fiscal e a transparência, que eram os objetivos. Eu construí duas variáveis: uma de resultado primário e outra de dívida consolidada líquida sobre receita corrente líquida. Consegui recuar o resultado primário porque havia dados anteriores à LRF. Dividi a pesquisa em três fases: uma foi de 95 até a Lei de Responsabilidade Fiscal; outra, da Lei de Responsabilidade Fiscal até a crise econômica, que se verifica mais nos estados a partir de 2013, e a terceira, daí em diante.
Capital Político: Como era o período anterior à Lei de Responsabilidade Fiscal?
Selene Peres Nunes: A realidade era de déficits primários bastante expressivos nos estados de um modo geral. A heterogeneidade era baixa nesse período, estava todo mundo muito mal. A entrada em vigor da LRF provoca uma quebra estrutural. Passa-se a ter superávits primários positivos, em alguns casos crescentes, até a crise econômica. E essa é uma situação verificada não só na média dos estados, mas a heterogeneidade continua sendo baixa. Estava todo mundo mal e ficou todo mundo bem. Aí vem a crise econômica e o que acontece? A situação piorou, então passam a ser registrados déficits primários novamente, embora não no mesmo nível anterior ao da LRF – mais baixo, melhor do que antes, mas com uma heterogeneidade maior.
Capital Político: A crise econômica a partir de 2013 é um marco, portanto.
Selene Peres Nunes: A heterogeneidade explode depois da crise econômica. Observo essa assimetria e à luz dos institucionalistas, da escola de institucionalistas, começo a me questionar sobre o que aconteceu com essa instituição, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em que medida a gente conseguiu realmente mudar a realidade? Em que medida não se tem um path dependency, uma dependência de trajetória passada, alguma coisa que faz a gente voltar para o passado? E se mudou a instituição, será que a LRF é a mesma do início ou ela também mudou? Aí tem uma característica importante na Federação Brasileira, que é o fato de se ter autonomias. É uma federação em que se tem autonomia política, administrativa, financeira. Do ponto de vista da legislação, existem interpretações locais, que são capitaneadas por tribunais de contas, que não estão subordinados uns aos outros. A jurisprudência de um não é obrigatória e nem seguida por outro. Não existe uma uniformidade nacional na interpretação da lei. Isso, de certo modo, faz com que haja uma espécie de mutação genética na Federação.
Capital Político: Como se dá esse fenômeno?
Selene Peres Nunes: Existe uma lei no início, mas, à medida que ela vai sendo aplicada e com visões diferentes, vão explodindo mutações na Federação. São práticas não necessariamente uniformes ao longo do tempo e que também não são uniformes espacialmente no Brasil. Além disso, há todos os aspectos políticos locais, o que é preciso levar em consideração. Isso é uma coisa que se enxerga bem quando se olha a dívida consolidada líquida, em percentual da receita corrente líquida. Na tese, eu fiz gráficos para cada um dos estados, e percebe-se que dá para separá-los em grupos. Tem estados que estavam muito desajustados antes da LRF, fizeram um esforço tremendo de ajuste e continuam ajustados até hoje. Outros ficaram em uma situação meio intermediária, como é o caso de Minas Gerais, que ajustou as contas, mas ficou só um pouco abaixo do limite – e com qualquer suspiro explode. O Rio de Janeiro teve um ajuste, mas depois explodiu. E temos o caso do Rio Grande do Sul, que nunca se ajustou. Desconfio até que nem tenha tentado.
Capital Político: O que explica essas diferenças?
Selene Peres Nunes: Há questões políticas locais que não se pode ignorar. Em primeiro lugar, temos uma assimetria de tamanho: os grandes e os pequenos. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são os grandes, em termos de PIB e em termos de dívida também. Os que têm a maior dívida consolidada são esses quatro. E existem os pequenos. A posição política dos grandes parece fazer maior diferença em relação ao desempenho deles. São Paulo, embora seja o maior de todos, se ajustou. Tinha uma tradição política ali de compromisso com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que nasceu no governo do PSDB, e que é completamente diferente do caso do Rio Grande do Sul. Os gaúchos tiveram, por muito tempo, governos do PT, que faziam oposição à Lei de Responsabilidade Fiscal.
Capital Político: Esse contexto político foi determinante?
Selene Peres Nunes: Não dá para ignorar esse fato e a consequência que isso tem para o nível de dívida. Existe uma questão ideológica aí, de como é que se enxerga que deve ser a participação do Estado na economia. Quando se acha que o Estado deve ter uma presença concentrada em algumas áreas e que é importante esse valor do equilíbrio fiscal, temos um tipo de postura. Agora, quando se acha que o Estado deve puxar o crescimento econômico – nas palavras da Dilma Rousseff, “gasto é vida” – então, tenho que gastar para crescer. É uma outra estratégia. Não quero fazer uma avaliação maniqueísta e entrar no mérito do que está certo e errado, mas são maneiras diferentes de pensar a economia e que determinam posturas políticas também diferentes.
Capital Político: A rigor, não falta uma consolidação institucional para valer da LRF, no sentido de haver um consenso ideológico e político em torno da lei, para enraizá-la? Um exemplo disso são as ações de 18 anos atrás que o STF começou a julgar e que questionam princípios fundamentais da lei, como a possibilidade de se reduzir jornadas e salários para reequilibrar as contas públicas.
Selene Peres Nunes: No início, essa não era uma questão fundamental porque a lógica da LRF é muito mais preventiva do que curativa, digamos assim. A lógica é evitar que a crise ocorra. Depois da crise instalada, há alguns mecanismos, mas não são os pontos mais fortes da lei. O mecanismo mais forte é sempre a prevenção de riscos, com a correção de desvios, coisas preventivas mesmo. É planejamento. Não é corrigir a crise já instalada porque, quando se tem excesso de pessoal, que é o caso da maioria dos estados, o que se pode fazer? Seguir o script da Constituição Federal, que é reduzir pelo menos 20% dos cargos em comissão, depois os não-estáveis e os estáveis. Isso é muito traumático. Nenhum governante, eu diria, de direita ou esquerda, gosta de fazer isso. A regra da lei é evitar que chegue nesse ponto. Se o governante segura o aumento de pessoal, segura as contratações e deixa a receita crescer, as contas se ajustam ao longo do tempo sem fazer demissão. O problema é que boa parte dos estados não seguiu esse script da lei, a prevenção não foi feita. Agora estamos naquele momento em que existe a crise e é preciso lidar com ela. Uma coisa que observo na minha tese de doutorado é que a dívida não é um problema dos estados. Salvo Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, todos os outros estão enquadrados no limite da dívida da LRF.
Capital Político: Significa que a lei teve efeito?
Selene Peres Nunes: Sim, é possível observar nos gráficos a queda expressiva da dívida consolidada. É possível ver isso na Federação como um todo e olhar também no particular, que é quando aparecem as assimetrias. O primeiro capítulo da tese é para identificar as assimetrias e construir hipóteses sobre isso, conjecturas. Observo, por exemplo, que para os pequenininhos a situação não é muito diferente, independentemente da posição política que predomine no local. Eles tendem a se ajustar mais. Agora, no caso dos grandes estados, a posição ideológica faz diferença. O grande se impõe. O pequenininho, pode ser do PT, do PSDB, do DEM, pode ser qualquer coisa, mas ele acaba por se ajustar. É claro que existe também o exemplo da União, que é muito forte em uma Federação.
Capital Político: Como a União influencia?
Selene Peres Nunes: Sabemos que as coisas não aconteceram só nos estados. A União tem, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a função de suspender operações de crédito, garantias e transferências voluntárias, caso os limites não estejam sendo cumpridos. E a gente sabe que houve certa leniência, certa flexibilidade na aplicação das restrições institucionais, no período do PT. Havia uma concepção de que era preciso dar mais folga para os estados gastarem porque precisavam gastar mais, se estavam na crise. É uma maneira de ver o mundo, de ver a economia também, e encarar o Estado como motor de desenvolvimento. É completamente diferente do discurso do ministro Paulo Guedes agora, que diz: “Olha, o Estado está atrapalhando, então a gente precisa mudar”. É diferente, existe uma dicotomia aí.
Capital Político: No caso dos quatro grandes estados, que estão sempre em uma posição mais dominante e com maior poder de imposição, isso acaba levando o restante do país a pagar por eles também?
Selene Peres Nunes: Esse é um pressuposto da Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando se escreveu o artigo 35, que vedava o refinanciamento das dívidas, o objetivo era evitar o risco moral. Se já se antecipa que em algum momento vai poder passar por um refinanciamento, diminui a preocupação de se fazer o ajuste. Isso permaneceu durante um bom tempo, apesar de ter surgido muita proposta para mudar a LRF. Foram mais de 200 projetos para mudar a LRF, que não foram aprovados. Não houve apoio para essa aprovação. A primeira mudança foi a Lei de Transparência, que foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados. Todo mundo queria transparência e é uma lei que convergia com os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, aperfeiçoava os mecanismos de transparência. As mudanças que aconteceram depois, que foram basicamente no refinanciamento de dívida, aconteceram por pressão dos estados e já depois da crise.
Capital Político: O que fica claro em todo esse processo?
Selene Peres Nunes: Esse comportamento assimétrico ao longo do tempo e assimétrico espacialmente. E aí procurei identificar a razão disso. No segundo capítulo da tese, faço um trabalho nos tribunais de contas, com o envio de um questionário para os técnicos de vários desses tribunais que trabalhavam justamente com a Lei de Responsabilidade Fiscal. O questionário está dividido em duas partes. Na primeira delas, pergunto sobre as questões institucionais do próprio tribunal de contas, os critérios de indicação dos conselheiros, o nível de independência que teriam os auditores para trabalhar, questões dessa natureza. Na segunda parte, indago sobre contabilidade criativa. E aí eu vou perguntar o seguinte: esse critério aqui da Lei de Responsabilidade Fiscal, como é cumprido? Você cumpre exatamente ou teve alguma mudança no tribunal local? E procuro saber se essa mudança foi uma regra formal, porque alguns tribunais têm resoluções editadas por eles, mudando e dando uma interpretação diferente à lei. E outros têm critérios informais que aplicam conforme o caso. Depois, tabulo essas respostas e construo a ideia de que existe uma complementaridade entre as instituições.
Capital Político: Como isso acontece na prática?
Selene Peres Nunes: A LRF é uma instituição que não funciona sozinha, precisa de apoio do controle externo. A própria lei diz que quem vai fiscalizar a LRF é o tribunal de contas. E aí vamos ver como os tribunais de contas se organizam. O questionário identificou vários tipos de problemas nesses tribunais. Existe um que é mais frequentemente referenciado, que é a questão da indicação política. Como boa parte dos conselheiros, quando não a totalidade, é indicada politicamente, eles têm um vínculo. Eles passam a ter um vínculo político com o estado e seu governante.
Capital Político: Mesmo que sejam cargos vitalícios?
Selene Peres Nunes: Existe uma dívida moral, digamos assim, com aquele grupo que indicou. Não necessariamente a pessoa, mas um grupo de poder político local que indicou. Um conselheiro indicado por um grupo político tem uma determinada ideia de como deve ser cumprida a Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso afeta as decisões do tribunal. A Constituição diz que a regra para indicação de conselheiro tem que levar em conta o notório saber jurídico e econômico, além da reputação ilibada, mas a legislação em si não define muito bem o que é uma coisa e outra. O que seria notório saber? O que seria reputação ilibada? E aí com base nisso tem uma indicação política. O que se verifica é que há todo tipo de formação nos conselheiros – tem gente formada em música, enfermagem, educação física, coisas que absolutamente não têm nada a ver com gestão pública. Há uma quantidade enorme de processos contra conselheiros de tribunais de contas, antes e depois da nomeação, e isso tem levantamento do Superior Tribunal de Justiça, porque eles têm foro privilegiado. A gente observa que os tribunais são muito diferentes entre si. Há tribunais no Brasil, por exemplo, que nunca fizeram um concurso público, o que significa que são todos indicados politicamente, inclusive os técnicos.
Capital Político: E são muitos cargos?
Selene Peres Nunes: Alguns tribunais são enormes. Podem chegar a ter setecentas pessoas, cargos com salário elevado. Até o prédio é uma estrutura maciça, suntuosa. Acho que o controle externo é absolutamente necessário para as questões de finanças públicas. Sou contra essa ideia de acabar com os tribunais, mas eles precisam ter uma reforma que passe pelos critérios de indicação, pelos requisitos constitucionais que precisam ser melhor balizados e que também passe pelas regras de funcionamento. Não faz sentido ter funcionários trabalhando com conflitos de interesse, funcionário que trabalha em um tribunal e também em um escritório de advocacia que presta serviços para os próprios jurisdicionados.
Capital Político: Na sua pesquisa, você encontrou esse tipo de situação?
Selene Peres Nunes: Também. Casos de nepotismo cruzado, casos de toda ordem. Falta de independência funcional dos auditores para auditar ou até mesmo para traçar um plano de auditoria.
Capital Político: A verdade é que a lei é muito boa, mas quando se chega na matéria-prima…
Selene Peres Nunes: É a história de ver como as salsichas são feitas. Eu fui na fábrica ver como as salsichas eram feitas, cheguei a todas essas disfunções. Existe uma complementaridade dinâmica entre duas instituições – LRF e controle externo. A maneira como o controle externo funciona faz uma enorme diferença em relação ao padrão com que a Lei de Responsabilidade Fiscal é cumprida ou não cumprida.
Capital Político: Uma saída seria nacionalizar a interpretação, como se houvesse um Supremo Tribunal de Contas da União que uniformizasse a jurisprudência?
Selene Peres Nunes: Existe já uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em tramitação no Congresso Nacional que prevê que a parte correcional vai passar para o Conselho Nacional de Justiça. Essa questão de saber se o conselheiro tem que ser punido, por essa ou aquela conduta, deixa com o CNJ, porque eles têm status de magistrado e já fazem isso com o Judiciário.
Capital Político: Hoje ninguém faz esse tipo de controle em relação aos tribunais de conta?
Selene Peres Nunes: Ninguém faz. Isso ficaria com o CNJ. A parte de padronização do entendimento, quando for necessário adotar uma legislação nacional, passaria para o Tribunal de Contas da União. Mas a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil é contra essa PEC. Eles querem um conselho próprio, para que eles mesmos se autorregulem. Acho complicado isso. Para mim, é colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. Não dá certo. Diante da crise, há vários tipos de posições, desde gente falando que é melhor acabar com os tribunais de contas, até o pessoal dos tribunais de contas querendo um conselho próprio, que seria um conselho nacional dos tribunais de contas. E tem essa posição intermediária da PEC, à qual me alio. É uma questão que precisa ser enfrentada, que a meu ver faz parte de uma agenda fiscal positiva para o país. Não dá para ter uma agenda fiscal positiva sem mexer com os tribunais de contas.
Capital Político: Uma Lei de Responsabilidade Fiscal 2.0?
Selene Peres Nunes: Não é uma LRF porque essa legislação ficaria igual. Teríamos uma PEC e, eventualmente, uma lei complementar tratando de questões de funcionamento do controle externo, vedando conflitos de interesse, dizendo que tem de ter concurso público. Questões desse tipo geram melhores condições para os tribunais trabalharem sem tantas interferências políticas e com uma regulação clara.
Capital Político: Mas isso garantiria independência suficiente para os tribunais fazerem frente, por exemplo, à contabilidade não adequada por parte dos governos estatuais?
Selene Peres Nunes: Vejamos o exemplo do TCU, que atuou fortemente na rejeição das contas da ex-presidente Dilma Rousseff, no período de 2014 a 2015, o que acabou depois subsidiando o processo de impeachment. Foi uma construção de quem? Em primeiro lugar, dos técnicos, que são todos concursados. Eles se debruçaram sobre as contas e construíram os relatórios, que foram para o pleno. É verdade que os ministros do TCU são indicados politicamente. Mas já tinha todo um trabalho feito. Portanto, no TCU, os técnicos têm o poder de iniciar um trabalho como esse, sem pedir autorização para o pleno. O técnico é concursado, faz parte das obrigações dele, ele tem independência funcional para iniciar esse processo. É lógico que a decisão será sempre a do pleno, mas é diferente de tribunais de contas estaduais, onde é muito frequente se ter, de um lado, auditorias que nem são iniciadas porque não são autorizadas. E quando os posicionamentos técnicos são feitos, muitas vezes o pleno diverge frontalmente. E aí vai tudo por água abaixo. Um exemplo disso é Rio de Janeiro. O que aconteceu? O parecer técnico não só era pela reprovação das contas, mas dizia que as contas não espelhavam a realidade financeira, ou seja, eram uma ficção. Os técnicos chegaram a dizer claramente isso. E o pleno aprovou por unanimidade. Mas quem eram os integrantes do pleno? Aqueles mesmos que estão presos. Então, tem uma comunicação entre o governo e o tribunal. Eles estavam juntos, ao contrário do que se imagina da atuação de um controle externo. Assim fica muito complicado.
Capital Político: Quando se discute o desenvolvimento institucional, é preciso lembrar que os tribunais de contas originalmente são ligados ao Legislativo.
Selene Peres Nunes: Sim, no Brasil seguimos um modelo em que eles não são órgãos do Judiciário e sim do Legislativo, mas com autonomia para julgar inclusive as contas do Legislativo. No caso das contas do Executivo, eles não julgam, dão parecer pela aprovação ou rejeição, que irá se dar pelo Legislativo. Mas todos os outros gestores julgam.
Capital Político: Um país que fez o impeachment de uma presidente por questões ligadas à responsabilidade fiscal parece que não conseguiu transformar esse caso em indutor de boas práticas, não?
Selene Peres Nunes: É verdade, mas vamos ao caso do Rio Grande do Sul. Sem entrar em detalhes técnicos, muitas das denúncias contra a presidente Dilma – não cumprimento das metas fiscais, leniência em relação à LRF, não aplicação do contingenciamento, mais a aprovação de créditos adicionais quando se precisava fazer cortes – foram práticas que aconteceram também no Rio Grande do Sul. A análise técnica indicou que isso tinha sido feito, mas as contas foram aprovadas por unanimidade. O entendimento foi que o governo precisava disso porque estava passando por uma situação difícil. E pronto. Esse era o argumento.
Capital Político: Com tudo isso que aconteceu em vários estados, o Brasil nunca teve um caso de impeachment de governador por questão ligada às contas fiscais…
Selene Peres Nunes: Para que isso ocorra, é preciso ter duas condicionantes. Em primeiro lugar, realizar um trabalho técnico muito fundamentado, em termos de contas públicas. De um modo geral, a sociedade e o Legislativo não têm um acompanhamento tão detalhado como o que faz um tribunal de contas sobre as finanças do estado. Esse trabalho técnico não é uma coisa trivial, tem que ser construído. Depois, o impeachment é sempre um processo político. Vai depender sempre das condições políticas que aquele governante tem no Legislativo. Até porque, quando se está muito perto do final do mandato, mesmo tendo razões técnicas para o impeachment, dificilmente o Legislativo apoiaria um desgaste desses. Porque é um trauma, uma fratura, digamos assim. Mesmo no início do mandato, depende muito se o governador tem ou não maioria, como é sua relação com o Legislativo.
Capital Político: Você trabalhou na construção da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com base na sua experiência, qual o comportamento dos políticos em relação à ideia de responsabilidade fiscal? É um valor para eles?
Selene Peres Nunes: Trabalhei com esse tema inclusive na minha tese. Na época da tramitação da proposta, havia claramente uma coalizão pró-legislação de responsabilidade fiscal e uma coalizão pró-gasto. Era um embate. Não foi tranquila a tramitação da LRF. Houve muita crítica, muito debate. O deputado do PCdoB Sérgio Miranda vocalizava muito as opiniões do grupo que defendia, por exemplo, que não se tivesse controle para as despesas obrigatórias de caráter continuado e que se deixasse de pagar os juros da dívida. Tinha uma posição forte nesse sentido. Dizia: “Como é que você vai penalizar o servidor, tudo vai na despesa de pessoal, e por que não renegociar a dívida?”. Aí a gente explicava para ele que a dívida era gerada justamente porque havia despesas acima das receitas. Como não é possível garantir que vai ter receita, o que se pode fazer é cortar na despesa para evitar esse desajuste que gera dívidas. Aí ele falava: “Não, o problema da dívida é financeiro, são os juros e a gente tem que fazer uma auditoria da dívida e não pagar isso tudo”. Era um outro discurso e isso se refletia nas emendas que foram feitas ao projeto. O que aconteceu é que essa coalizão pró-gasto foi perdedora nesse primeiro momento da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Capital Político: Mas a aprovação da LRF pode ser considerada um ponto final nessa disputa?
Selene Peres Nunes: A lei foi aprovada, as emendas do grupo de oposição foram rejeitadas e se conseguiu ir à frente com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas isso não acaba porque a disputa no Legislativo não encerra a questão. Algumas pessoas acham que uma instituição formal como a LRF, aprovada por lei, resolve tudo. Aprovou a lei e pronto. Não é assim. Quando a lei é aprovada, aí é que o trabalho começa.
Capital Político: O que isso explica isso?
Selene Peres Nunes: É porque existiu toda uma disputa no Judiciário, foram apresentadas ações questionando a lei como um todo e 31 dispositivos específicos da LRF. Conseguimos ganhar no Judiciário, liminarmente, naquele primeiro momento, mas até hoje a situação se arrasta. Bom, acaba aí? Não, porque aí tem a parte da aplicação. Alguns teóricos interessantes, como Paul Sabatier, apontam a existência de coalizões do advocacy. Depois que não se conseguiu mudar a lei, passa-se para o operacional – a contabilidade. É o seguinte: dá um jeitinho aí e interpreta a lei de uma maneira que esse pedaço não fique dentro da conta, porque aí fica mais flexível e a gente consegue acomodar. Ou seja, faz de conta que cumpriu, mas na verdade não cumpriu. Fiz o diagnóstico recentemente de Minas Gerais e até apresentei o resultado para o governador Romeu Zema. Uma coisa interessante é que o tribunal vinha publicando, há muito tempo, dois demonstrativos de pessoal. Um, segundo as regras da LRF, interpretadas pelo Tesouro Nacional, e outro, segundo a interpretação do tribunal de contas do estado.
Capital Político: E qual a diferença encontrada?
Selene Peres Nunes: Foi de 20%. É um negócio de louco. Aí tem gente que chega para mim e fala: “Mas será que não dava para você mudar a lei para deixar mais claro?” E eu respondo: “Lá na lei está escrito que é preciso incluir ativos, inativos e pensionistas. O sujeito vai e exclui inativos e pensionistas. Qual é a parte que você acha que tem que ser melhor escrita?” Porque está escrito, é textual. Mas o sujeito interpreta da maneira que lhe convém. Tem vários níveis de conveniência. O primeiro é não rejeitar as contas do governador que, de repente, é amigo, parceiro, indicou, faz parte do grupo político. E tem toda uma relação que se constrói. Por exemplo, o orçamento do tribunal passa pelo estado e aí acontece uma espécie de acordo tácito – não incomoda a gente que a gente também não incomoda vocês, e vamos acomodando aqui. E isso passa pelo Legislativo. No Rio de Janeiro, isso ficou muito claro. O grupo político do Legislativo era o mesmo do estado e do tribunal. O tribunal rejeitou contas do Executivo? Não. Rejeitou contas do Legislativo? Não.
Capital Político: A julgar pela delação do Sérgio Cabral, o Judiciário também, não?
Selene Peres Nunes: Tudo junto e misturado. No Rio Grande do Sul, o que sei é que logo depois da LRF o tribunal de contas aprovou uma resolução excluindo o imposto de renda retido na fonte das despesas de pessoal e da receita corrente líquida. Você exclui no numerador e no denominador e isso dá uma folga na despesa de pessoal. Isso foi feito porque, caso contrário, o Judiciário teria que se ajustar. Aí fizeram assim. No início, apenas o Judiciário estava desajustado. A lei fala que se você estiver desajustado não pode fazer novas contratações, não pode fazer concurso, não pode dar aumento de pessoal, reestruturar carreira, nem pagar hora extra. Se você estiver mesmo desajustado, dá uma segurada. Mas se você reinterpreta de uma maneira que fica tudo livre e apenas na aparência está tudo ajustado, os órgãos do estado continuam a dar aumentos de pessoal, a fazer contratações, e tal. Se olharmos hoje o Rio Grande do Sul, todos os poderes estão desajustados. Todos, inclusive o Ministério Público. Não sobrou ninguém. Pela regra do tribunal, no entanto, está tudo ajustado. Contabilidade criativa é um problema porque ela não gera dinheiro para pagar.
Capital Político: Tem uma hora que quebra, não é?
Selene Peres Nunes: Quebra.
Capital Político: A Procuradoria Geral da República poderia entrar com uma ação contra as interpretações dos tribunais de contas dos estados?
Selene Peres Nunes: Acho que padronização tem que ser feita pelo TCU e aí se daria possibilidade de a PGR recorrer num outro patamar que não gerasse um enfrentamento político entre o governo estadual e o tribunal. Os governadores têm certo receio de enfrentar os tribunais de contas. E se eles enfrentam e o tribunal resolve rejeitar as contas do governo? É como se o tribunal pudesse assumir uma posição meio vingativa, exercendo uma atuação mais rigorosa com quem solicitou rigor. Então, o gestor local também fica intimidado.
Capital Político: Quais são as saídas que você enxerga para esse contexto, que é quase um conluio entre as diversas instâncias de poder? É uma rede tecida em torno dos estados…
Selene Peres Nunes: Não é rápido e tem que começar institucionalmente. Aprovar a PEC e colocar o TCU e o CNJ como atores importantes nessa história. E depois tem que ter uma lei complementar que altere, que dê um padrão mínimo nacional para o controle externo. Esse é o calcanhar de Aquiles. Depois que se resolver o controle externo, é possível eventualmente fazer uma ou outra alteração na LRF, mas pouca coisa, que não esteja já escrita lá.
Capital Político: Pode parecer uma pergunta capciosa, mas tem que deixar quebrar? A garantia de socorro da União ainda estimula os estados a agir de forma irresponsável?
Selene Peres Nunes: Sim, estimula. Tem poderes de estados dando aumentos astronômicos nesse período agora, no meio da crise. Tem Ministério Público de estado onde o procurador recebe R$ 4 mil de auxílio-livro, que é indenizatório, não é pessoal. Não paga nem imposto de renda. Inclusive causas retroativas, que rompem com teto, não estou falando do teto de gastos da União e sim do teto de remuneração constitucional, que se atrela. Essa questão do teto constitucional, por exemplo, tem que ser enfrentada porque existe uma captura por corporações locais que vão dilapidando as contas do estado e aumentando seus próprios salários.
Capital Político: Por que não conseguimos criar no Brasil uma cultura de respeito fiscal na sociedade como um todo? Ou você acha que existe e ela não tem instrumentos?
Selene Peres Nunes: Acho até que existe porque a Dilma, por exemplo, sofreu impeachment com apoio popular, havia um movimento. As eleições que vieram depois refletiram um pouco isso. Acredito, inclusive, que muitas pessoas votaram no Bolsonaro como uma alternativa ao PT, e não necessariamente por simpatia ao candidato. Ele já tinha anunciado que o Paulo Guedes, que é um liberal, estaria no ministério. Existe, é claro, o apelo muito forte do gasto social, é um traço da sociedade brasileira, que enxerga muito o estado como pai, como aquele que vai lá e toma conta e cuida. Esse é um traço muito forte da nossa cultura. Mas, por outro lado, as pessoas querem ter um mínimo de mercado funcionando. Tenho a impressão que o exemplo da Venezuela também é uma coisa que apavora as pessoas. Ninguém quer isso.
Capital Político: O exemplo do Rio também impressiona?
Selene Peres Nunes: No caso do Rio, a gente vê as consequências, as coisas estão associadas. O Rio surge como a capital mais violenta do país. Esse aumento de criminalidade também não pode ser completamente dissociado das condições sociais que se tem e das condições políticas existentes no local. As coisas não se decidem numa votação. Ninguém vota em tribunal de contas.
Capital Político: Sem mudar esse microuniverso não se consegue sair do lugar?
Selene Peres Nunes: Não muda, não sai do lugar. Esse é o capítulo dois da minha tese. Depois vem o capítulo três, em que questiono os critérios contábeis usados pela União. Para equilibrar um pouco o meu enredo e não deixar a conta só nos tribunais de contas. Aponto algo que é um risco para o futuro, porque o processo das pedaladas fiscais tem muito a ver com o regime contábil usado na União, que sempre foi um regime de caixa. É por esse regime que se contabiliza recebimentos e pagamentos. O resultado primário é calculado assim. Recebeu e pagou. Se você faz as contas pelo regime de caixa, tem um estímulo para antecipar recebimentos e postergar pagamentos para aumentar o resultado primário. Todas as pedaladas verificadas têm a ver com o regime contábil. No caso do impeachment, foi analisada apenas uma com mais profundidade pelo tribunal de contas, mas foram identificadas mais de dez operações em que houve postergação de pagamento e elas têm a ver com regime contábil.
Capital Político: Se fosse o regime de competência seria diferente?
Selene Peres Nunes: Seria, e aí vem a questão. Por que a Lei de Responsabilidade Fiscal fala que é para usar regime de competência e a União usa regime de caixa? No início, se dizia que não havia contabilidade patrimonial desenvolvida. Mas houve uma convergência para as normas internacionais de contabilidade pública. Essa realidade mudou ao longo do tempo. Hoje temos números por competência, mas continuam a não ser usados.
Capital Político: Internacionalmente, o critério consagrado é pelo regime de competência?
Selene Peres Nunes: Competência. Setor privado é competência, internacional é competência. A estrutura conceitual aprovada pelo Conselho Federal de Contabilidade para o setor público no Brasil diz que é competência. E a gente usa o conceito de caixa. Até recentemente, a gente usava um critério para a União e outro para os estados. Para a União, era caixa, que é o critério mais frouxo. E para os estados, usava-se a despesa liquidada ao longo do período, empenhada no final, que é um critério muito mais rigoroso – não é competência, mas é mais perto desse conceito. O Tribunal de Contas da União bateu muito nessa questão do uso de dois critérios. Aí, para este ano de 2019, o Tesouro aprovou uma regra dizendo que é caixa para todo mundo. Ou seja, institucionalmente, não se resolveu o que pode ser a origem de novas pedaladas no futuro, na União, e ainda criou a possibilidade que elas sejam feitas nos estados.
Capital Político: O grau de dificuldade que você sentiu na época da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal pelo Congresso se assemelha à complexidade do quadro que acompanhamos agora com a reforma da Previdência?
Selene Peres Nunes: Sim, porque continuamos a ter, de um lado, o pessoal que quer fazer ajuste, que quer estabilidade, e de outro lado quem é contra. Do mesmo jeito que tinha lá o pessoal que dizia que o problema da dívida é financeiro, aqui tem o pessoal que diz que não tem déficit da previdência. E tem uma coalizão em funcionamento para ampliar gasto. São os mesmos universos em conflito, não se esgota. Insisto em dizer que talvez não se esgote nem na PEC porque a experiência da LRF mostra que há o dia seguinte. Tem o Judiciário. Se for cobrada uma alíquota muito elevada do servidor é capaz de o pessoal ir ao Judiciário reclamar que é confisco. Existem ainda as interpretações que depois vão se constituindo na prática. As instituições são formais e informais, não necessariamente essas coisas se resolvem na lei.
Fonte: “Capital Político”