A luta contra a corrupção tem permeado a vida pública brasileira nos últimos anos. Seja por ter aumentado nos governos petistas, saindo, por assim dizer, dos padrões costumeiros até então, seja por sua ampla divulgação, ela se tornou uma verdadeira bandeira política. Ganhou as ruas e a consciência dos cidadãos.
O desgaste público da ex-presidente Dilma Rousseff, moralmente atingida indiretamente por seu partido, as manifestações de rua, o papel central que a Lava Jato veio a assumir e a eleição do atual presidente são expressões dessa reconfiguração entre a moral e a política.
Acontece, porém, que a vida política, ao gravitar em torno desse eixo, sofreu um deslocamento importante, como se a resolução dessa questão fosse ela mesma a solução de todos os problemas nacionais. Seria uma chave mestra capaz de abrir qualquer porta. Mas ela é apenas a chave para uma fechadura específica, incapaz, por si só, de equacionar outros problemas importantes.
Note-se a importância que a Lava Jato adquiriu. De uma investigação sobre a corrupção envolvendo partidos e personagens políticos os mais variados veio a apresentar-se como uma espécie de redenção nacional. A linguagem teológico-política é aqui clara, por seu caráter salvacionista. Seu efeito colateral foi, porém, o de que seus agentes vieram a se representar como se fossem missionários a anunciar a boa nova.
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Seu corolário são exacerbações de funções e ações que podem até ameaçar o Estado de Direito, quando prisões preventivas são utilizadas sem nenhum critério, como se viu recentemente na prisão do ex-presidente Michel Temer. Ele foi encarcerado sem ter sido ouvido, julgado ou condenado, sem ter podido exercer o que é o mínimo num Estado de Direito: o direito à defesa.
Algo análogo está acontecendo com o presidente Jair Bolsonaro. Ganhou a eleição ancorado numa campanha contra o PT, contra a corrupção e contra a criminalidade, sendo ele também um fervoroso defensor da Lava Jato. Tornou o seu principal juiz, Sergio Moro, ministro da Justiça, numa nítida demonstração de sua prioridade. Não sem razão o projeto do novo ministro contra a criminalidade foi logo enviado ao Congresso Nacional.
Igualmente importante, do ponto de vista eleitoral, foi o apoio dos evangélicos, ao tornar a questão dos costumes assunto principal, ancorado na luta contra o politicamente correto. A pauta nacional estaria, assim, esgotada. Nada foi expresso, muito menos debatido, sobre as reformas previdenciária e tributária, apesar de serem questões que, se não forem equacionadas, podem levar o País à insolvência fiscal, com todos os problemas sociais e econômicos daí decorrentes. O máximo que foi dito é que qualquer pergunta a esse respeito deveria ser dirigida ao “posto Ipiranga”, o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Só que governar o País não equivale a comprar gasolina ou ir a uma loja de conveniência. Os problemas são muito mais complexos. Os impasses do atual projeto da Previdência bem mostram sua atualidade. A esse respeito o governo demonstra falta de articulação política e ausência de atuação no processo de formação da opinião pública, seja pelas mídias tradicionais, seja pelas redes sociais. A desorientação parece ser seu único norte.
Há, porém, uma lógica nessa desorientação, a de permanecer no discurso de campanha, recorrendo à luta contra a corrupção, o politicamente correto e a violência no campo e nas cidades. O foco permanece eleitoral, com as mídias pessoais do presidente concentrando-se prioritariamente nesses pontos, sem que se vislumbre uma campanha mais ampla sobre as reformas, sobretudo de cunho liberal. Há um primado da pauta conservadora sobre a liberal.
A pauta conservadora vem se caracterizando pela lógica do confronto, como se se tratasse de uma luta de tipo salvacionista do bem contra o mal, da virtude contra o vício, dos amigos contra os inimigos. Toda crítica e divergência é vista como uma espécie de heresia, um desvio do reto caminho, aquele que é traçado por seus autores, os que se representam como tal. A vida política vê-se, assim, restringida por esse tipo de enquadramento ideológico.
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Ora, esse enquadramento tem uma lógica própria, baseada num tipo de movimento permanente, cujo traço principal consiste na agressão, na consideração do outro como inimigo, no tratamento do adversário como alguém que deve ser excluído. A exclusão é seu norte e o tratamento dos críticos, a sua desqualificação. Sob esse prisma, o País deveria viver num processo de constante instabilidade, como se essa fosse a condição de governar.
Instituições democráticas, todavia, exigem estabilidade e obediência a ritos institucionais. Governar tem como condição o respeito aos outros na negociação de propostas. Nada vai goela abaixo. A negociação política pressupõe concessões de ambos os lados. Não se pode simplesmente considerar o outro um corrupto por apresentar certas demandas.
Por exemplo, deputados apresentam emendas em função de suas bases eleitorais. Podem ser postos de saúde, campos de futebol ou escolas. Tudo isso é legítimo e faz parte do jogo político. Não há nenhuma vergonha nisto. Mesmo o preenchimento de cargos, baseado na ficha limpa dos pretendentes, se enquadra nesse tipo de negociação. Logo, não se pode identificar tal negociação política com uma luta da “nova política” contra a “velha”, do “bem” contra o “mal”.
Contudo, se à lógica da negociação política for aplicada a lógica do combate “religioso” à corrupção, como se assim tudo pudesse ser resolvido, o País só aprofundará seus problemas. Sem as reformas previdenciária e tributária o Brasil ruma para uma crise social, econômica e institucional, em que a instabilidade provocada pela luta política fundada na exclusão será somente um fator de ingovernabilidade.
Fonte: “Estadão”, 01/04/2019