Os últimos anos testemunharam inovações de gigantesco potencial no terreno monetário e bancário e um bom começo para mapear o que está se passando é a lei que definiu, em 2001, o SPB, Sistema de Pagamentos Brasileiro (Lei 10.214). Parecia apenas mais uma medida prudencial restrita às “câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação”, portanto, apenas mais um rescaldo da crise de 2008, com vistas a limitar o risco sistêmico.
Entretanto, ao isolar e proteger os circuitos de pagamentos do restante da atividade bancária a regulação abriu horizontes amplos e inesperados. Uma parte do sistema financeiro, o SPB, passava a ser tratada como uma “infraestrutura essencial”, ou “de utilidade pública”, diferentemente de outras atividades dos bancos. O BCB se viu, subitamente, frente a frente com um desafio concorrencial que nunca foi sua especialidade, e foi se abrindo uma colaboração interessante com o Cade, o qual, por sua vez, nunca teve a agilidade para remediar ou reprimir condutas anticompetitivas no sistema financeiro.
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Nos anos subsequentes, foi se observando com mais clareza uma tensão insolúvel: os “donos” de plataformas que compunham o SPB procuravam usar essa posição para escravizar seus clientes dos outros produtos financeiros “não essenciais”, como os instrumentos de poupança e outros tantos serviços. Era como se o supermercado só vendesse produtos da própria marca, ou se a companhia de eletricidade obrigasse seus consumidores a comprar as TVs de plasma, torradeiras e geladeiras das empresas ligadas. Era o império da venda casada e da reciprocidade.
Quando a lei brasileira revisitou o assunto em 2016 (Lei 12.865), foi bem além do estabelecido em 2001 ao tratar o sistema de pagamentos como um conjunto de plataformas, instituições e arranjos cujas relações entre si deveriam ser regidas por princípios novos, com sonoridade tecnológica, como “interoperabilidade” (capacidade de trabalhar “em grupo”), ou concorrencial, como “tratamento não discriminatório aos serviços e às infraestruturas necessários” ao funcionamento dos arranjos (o sistema não pode ter pedágios, interrupções discricionárias e dificuldades introduzidas para gerar rendas de monopólio). Tal como a internet.
A nova lei regulou algumas novidades revolucionárias, dentre elas a “moeda eletrônica” e, especialmente, as “contas de pagamento”, que criaram a possibilidade de instituições de pagamento competirem com bancos comerciais oferecendo contas remuneradas a 100% do CDI com as mesmas funcionalidades de depósitos à vista.
Era uma transformação importante, pois essas contas são muito parecidas, nos seus efeitos, com uma criatura de que se fala apenas no ambiente laboratorial: as moedas digitais “emitidas” por bancos centrais. E funcionam como criptoativos, mas sem necessidade de “blockchain”. Elas representam uma seriíssima e muito bem-vinda ameaça competitiva aos grandes bancos comerciais com os quais se dizia que era impossível competir.
A próxima novidade, anunciada nesta semana, atende pelo nome de “open banking”, uma frente muito ampla de possibilidades que se poderia tentativamente descrever como a ideia de, com vistas a melhorar a experiência do cliente, levar às últimas consequências a segregação entre o sistema de pagamentos e a comercialização de produtos financeiros, inclusive crédito.
Sua face mais conhecida é designada como “portabilidade”, ou seja, o direito de o cliente trocar de ofertante conforme encontre uma experiência melhor em determinados produtos (plano de previdência, crédito consignado) ou serviços (recebimento de seu salário). Como quem troca de provedor de acesso a uma rede.
+ Roberto Luis Troster: A concentração bancária no Brasil de 2014 a 2018
Na semana que passou, o Banco Central deu prosseguimento ao assunto de “open banking”, agora com essa designação, focando no poder do cliente dispor e portar os dados sobre seu histórico bancário. Com isso, o cliente pode cotar operações de crédito de forma competitiva, com grandes benefícios para si.
Nada pode ser mais salutar para a concorrência no sistema financeiro que a elevação do poder do cliente buscar o melhor para si.
Fonte: “Estadão”, 28/04/2019