A segunda maior satisfação do ser humano é a obtenção de crédito (a primeira é o amor realizado, mas este artigo é sobre crédito mesmo). O dinheiro à disposição abre as portas dos desejos e alarga as asas dos sonhos antes impossíveis de realizar. Crédito é poder. Daí a dificuldade de lidar com ele no dia a dia. Os desejos estão lá, numa solicitação permanente ao consumidor, bastando casar o impulso de compra à oferta de crédito na praça. E haja oferta.
O Brasil já viveu uma vida sem crédito. A grande inflação dos anos 80 e 90 eliminou quase por completo o instrumento do crédito pessoal, e mesmo o empresarial. Só tomava dinheiro emprestado, no setor privado, quem estivesse a ponto de quebrar. Com o advento do Plano Real e a possibilidade de planejar o futuro com mais estabilidade e menos inflação, o sistema financeiro começou a viabilizar operações de empréstimo ao consumidor. Mesmo assim, persistiam taxas escandalosas, embutidas em prestações que podiam se estender, no máximo, a 18 meses de prazo. Ainda estava longe de ser o céu para quem queria dinheiro a fim de realizar desejos de consumo.
Com o governo Lula, muito em função da melhoria do crédito internacional que o Brasil passou a desfrutar, o consumidor sentiu o doce poder de escolher, comprar e levar para casa seu objeto de sonho quando não a casa, ela inteira. A publicidade aproveitou para fazer sua parte. Os comerciais de produtos, da barra de chocolate se derretendo, do frango crocante, do automóvel esportivo com a tábua de surfe em cima e a garota linda dentro, com as crianças sorridentes e as famílias realizadas, tudo conduz a imaginação para o mundo do prazer alcançável, logo ali na frente, com uma simples ficha de crédito preenchida e aprovada. Depois, um abraço é só curtir e ir pagando em suaves prestações que podem chegar a sete anos, para um automóvel, ou até 30, portanto quase o resto de sua vida, se for o tão sonhado teto. Aliás, o nome encontrado para o programa popular do governo é rigorosamente correto nesse particular: Minha casa, minha vida.
O brasileiro acabou de empatar em dívidas os próximos dez anos de ganhos salariais
Andamos mapeando a virada do crédito a partir de 2003, pois foi a partir desse ano que, primeiro vagarosamente e em seguida embalado pelo lançamento do consignado, o consumidor partiu para as compras. De lá para cá, a massa salarial brasileira também vem se expandindo quase sem interrupção, outro quase milagre da política de estabilidade econômica. O tomador de crédito faz contas diante de seu objeto do desejo e calcula se pode enfrentar prestações futuras. O vendedor procura facilitar tudo, suavizando ou eliminando a parcela à vista e deixando as prestações mais pesadas para as calendas. Resultado: o brasileiro se financia mais e mais. O processo está bonito. Começou muito timidamente: em 2003, o brasileiro comprometeu em dívida nova só 130% do aumento salarial que teve naquele ano, de R$ 7,8 bilhões. Ou seja, tomou crédito novo em ritmo apenas um pouco acima do que ganhou a mais. Era valor muito modesto, se comparado ao potencial do mercado nacional de consumo e habitação.
Desde então, o consumidor tomou gosto de verdade pelo uso do crédito. Entre 2009 e este ano, o brasileiro agora se anima a comprometer 250%, ou 3,5 vezes seu aumento salarial anual, que chega a uma faixa de R$ 40 bilhões. Hoje, ele se endivida a um ritmo de cerca de R$ 140 bilhões por ano, velocidade alucinante para quem só comprava à vista, poucos anos atrás. É outra vida, muito mais gostosa e perigosa. Fizemos uma estimativa do que o brasileiro tem acumulado no crediário da praça. Desde 2003, a ciranda do crédito deixou no pendura cerca de R$ 400 bilhões. Compare agora os R$ 40 bilhões de ganho salarial atuais (esquecendo juros) com esses R$ 400 bilhões de dívida pessoal. Conclua, então, que o brasileiro acabou de empatar os próximos dez anos de ganhos salariais com o saldamento de seus compromissos financeiros. Até 2020, estaremos correndo atrás da próxima prestação. E daí, não foi bom para você?
Fonte: Revista “Época” – 02/08/10
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