No final do ano passado, o Governo Temer enviou ao Congresso a MP 868/2018, que altera o marco legal do saneamento básico no país. Essa Medida Provisória, por sua vez, tinha sido precedida pela MP 844/2018, que abordava o mesmo tema e não chegou a ser votada.
A nova MP tem validade até 3 de junho, o que representa um prazo bastante apertado, já que ainda precisa ser aprovada na Comissão Mista e no plenário da Câmara e do Senado. No dia 25 de abril, o Senador Tasso Jereissati apresentou seu relatório, que deve ser votado na próxima semana.
Os indicadores de saneamento no Brasil são catastróficos. Cerca de 35 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada. Metade da população não tem acesso aos serviços de coleta de esgoto e, do montante coletado, apenas 42% é tratado. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil encontra-se na 123ª posição do ranking mundial de saneamento.
Umas das consequências mais perversas desse quadro é a proliferação de doenças, como dengue, zika e chikungunya. Além de reduzir a produtividade dos trabalhadores, vários estudos mostram que problemas de saúde decorrentes de deficiências no sistema de saneamento afetam negativamente o desenvolvimento cognitivo das crianças.
O principal obstáculo para a universalização do saneamento no Brasil é o fato de que a titularidade dos serviços é dos municípios. Embora a ideia de descentralização na provisão de serviços públicos tenha méritos, nesse caso isso acarreta vários problemas.
Em primeiro lugar, grande parte dos municípios não dispõe de capacitação técnica para uma provisão adequada de serviços de saneamento. A regulação municipal em geral não existe ou é inadequada, e diferenças regulatórias entre os municípios criam incerteza e custos elevados para as empresas prestadoras dos serviços.
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Uma dificuldade associada é que muitas vezes a abrangência da atividade de saneamento vai além dos limites territoriais dos municípios, envolvendo regiões metropolitanas, por exemplo. Isso exige um esforço de gestão compartilhada que, seja por razões políticas, seja por limitações impostas pela legislação, acaba inviabilizando o fornecimento do serviço.
A MP 868/2018 procura atacar esses problemas de duas formas. A primeira é atribuir à Agência Nacional de Águas (ANA) a competência de estabelecer normas de referência nacionais para os serviços públicos de saneamento básico. Além disso, a MP determina que somente aqueles municípios que aderirem às normas da ANA terão acesso a recursos federais para o saneamento.
Essa medida pode contribuir de maneira importante para a harmonização regulatória do saneamento entre os entes subnacionais, estimulando investimentos no setor. Como os municípios não podem ser obrigados a adotar as normas da ANA, o mecanismo de condicionar repasses de recursos federais à sua adoção é uma forma engenhosa de induzir a implementação das medidas.
O segundo ponto central da MP é a criação de mecanismos de incentivos à competição na provisão de serviços de saneamento, com o objetivo de promover sua universalização. Atualmente, o setor privado atua em apenas 6% dos municípios. Além de representar um enorme desperdício de recursos potenciais, essa participação irrisória permite que serviços de saneamento de baixa qualidade sejam ofertados em condições de monopólio.
A legislação atual permite que municípios façam contratos sem licitação com empresas públicas, os chamados contratos de programa. Esses contratos muitas vezes não têm metas nem indicadores, e são renovados sem qualquer evidência de sucesso. Para mudar esse quadro, a MP estabelece que, antes de estabelecer um contrato de programa, o município deve fazer um chamamento público de propostas, aberto à iniciativa privada. Caso se apresentem um ou mais candidatos, além daquele interessado em firmar contrato de programa, a MP determina que deve ser feita uma licitação.
O relatório do Senador Tasso Jereissati vai além neste ponto, ao extinguir a possibilidade de que sejam firmados novos contratos de programa, e determinar que serviços de saneamento devem ser oferecidos em regime de concessão, mediante processo licitatório. Já os contratos de programa existentes devem ser modificados de modo a incorporar metas e indicadores, nos moldes estabelecidos em contratos de concessão.
Outra novidade importante do relatório é a atribuição de competência aos estados para estabelecer blocos regionalizados de prestação de serviços. Nesse caso, a titularidade poderá ser exercida pelo estado, por consórcio de municípios ou por estrutura de governança interfederativa instituída por lei complementar estadual. Esse mecanismo tem como objetivo evitar que municípios menores deixem de ser atendidos, além de permitir ganhos de escala na prestação de serviços de saneamento.
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Como frequentemente acontece no Brasil, a combinação de ideologia com grupos de interesse é uma grande ameaça à aprovação da MP do Saneamento Básico. A oposição mais forte vem da aliança entre aqueles que não desejam a participação da iniciativa privada por razões ideológicas com os que não querem mudar o status quo para preservar cargos em empresas públicas.
Embora geralmente nociva ao progresso econômico e social, essa coalizão é particularmente trágica neste caso. A modernização do marco regulatório do saneamento básico não somente é necessária, mas urgente.
Fonte: “Blog do IBRE”, 06/05/2019