Voltei a ir para o Rio de “barca”, gozando o doce balanço do mar e observando fascinado, tal como fazia quando menino, os barquinhos de pesca da Praça Quinze, oscilando ao sabor das marolas, num movimento incessante como o da própria vida, mas sem sair do lugar. Em tempos de política eleitoral, onde o realismo do ganhar a qualquer custo comanda corpos e almas, eles me dizem que balançar não é suficiente, pois o movimento por si só não leva a parte alguma.
Esse retorno à viagem marítima, devido aos enlouquecedores engarrafamentos da ponte, me faz imaginar que os niteroienses, acostumados ao doce balanço da barca, teriam mais senso de equilíbrio que os cariocas, habituados à terra firme de suas ruas acasteladas por imensas favelas. Imagino, então, que quem é de Niterói se ajeita melhor com as oscilações dos gerenciamentos pífios da cidade em que vivem; ao passo que os do outro lado não sabem que têm de bom apenas a vista. De qualquer modo e sem querer ofender, mas já o fazendo, penso que o balanço da barca é mais afim das oscilações democráticas do que os arrancos agressivos dos veículos que, em terra firme, viajam sem a fluidez das águas da nossa Baía de Guanabara, cujo perpétuo processo de despoluição não consegue mudar a paisagem triste de suas águas fétidas.
Há algo definitivo entre o doce balanço do mar e os eternos retornos da política nacional que, como as antigas máquinas a vapor, faziam mais de mil revoluções por minuto, mas sem sair do lugar.
Eu cedo descobri que os escritores falavam melhor do Brasil do que os acadêmicos que escrevem amparados pelas muletas das citações de subsociólogos (sempre estrangeiros) para inventar uma sociedade que jamais correspondeu ao que experimentamos.
E fazer sociologia é interpretar vivências, não é modelar o mundo em receitas de fora.
Vejam o seguinte: “Major Anacleto relia — pela vigésima terceira vez — um telegrama do Compadre Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro telegrama, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações que o Presidente do Estado fizera num anteprimeiro telegrama, de um Ministro conterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocráticomandológico-coactivo ao cabalísticoestatístico, daí para o messiânicopalimpséstico-parafrástico, depois para o cozinhativo-compradescorecordante, e assim, de caçarola a tigela, de funil a gargalo, o fino fluido inicial se fizera caldo gordo, mui substancial e eficaz; tudo isso entre parênteses, para mostrar uma das razões por que a política é ar de fácil se respirar — mas para os de casa, os de fora nele abafam, e desistem.” Isso não é muito, mais muito melhor, do que aquele texto que fomos obrigados a ler no curso daquele professor imbecil crente que era um gênio? Continuemos: “Tio Emílio está, em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política. Política sutilíssima, pois faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (no1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (no2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município no1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (no3). Dessa trapizonga [conjunto de coisas confusas], em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.” Eis duas observações de largo alcance e grande profundidade que não foram escritas por nenhum cientista social, pois que não invocam classes sociais, trabalho para si, ou o campesinato que subitamente sumiu da nossa mais avançada sociologia.
Dir-se-ia que não têm nenhum fundamento empírico, mas — como compensação — transbordam o caldo da experiência vivida. Foram escritas pelo ex-alienado e, no meu tempo de boboca metido a cientista social, do proibido João Guimarães Rosa que, em duas novelas — “A volta do marido pródigo” e “Minha gente” — ambas publicadas em “Sagarana”, teoriza sobre o nosso estilo de poder. Um estilo de resto rotineiro desde que o BRASIL confirmou ser esse brasilzinho mendaz de Lula.
Fonte: Jornal “O Globo” – 04/08/10
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