Desde que entrei na vida acadêmica (que nem sempre coincide com a universitária e menos ainda com a intelectual), em 1959, e fui profissionalmente iniciado naquele Museu Nacional que pegou fogo, tenho sido alvo de muita complacência. Algumas obviamente necessárias e benéficas, como as dos professores e mentores cuja obrigação é revelar com generosidade e complacência a nossa burrice relativamente a certos assuntos quando, por exemplo, pensamos que “cultura” é refinamento, artes plásticas, literatura e cinema nacional em particular; quando, de fato, “Cultura” é um estilo de vida (entre muitos). É um modo de ser e atuar no mundo.
Nesse sentido menos aristocrático, “cultura” é parte intrínseca da liberdade humana a qual resulta em diferenças entre grupos com suas línguas, tabus e credos coletivos, que produzem uma diversidade intrigante traduzida nas pesquisas das Ciências Sociais e não pelos doutores em Ciências Ocultas e Letras Apagadas, como dizia o Millôr.
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Ao lado das complacências proativas, existem, entretanto, as condescendências reveladoras de uma assumida superioridade política e moral (as duas dimensões se confundem no Brasil), as quais têm como motivo revelar a minha ignorância, a minha ingenuidade e, sobretudo, o meu reacionarismo.
“Achei aquela sua crônica muito reacionária”, disse-me com superioridade de cardeal da Idade Média um felizmente ex-colega. De uma outra feita, uma jovem ex-aluna me disse, com brutal e complacente sinceridade, não ler um jornal no qual eu escrevia, passando a certeza de que quem lia tais páginas sofria de alguma patologia ideológica.
Na faculdade, não fui encorajado a ler Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre ou Machado de Assis. O primeiro escrevia em francês – sendo, pois, um alienado. O segundo fazia apologia da intimidade entre senhores e escravos africanos (intimidade somente lida no plano óbvio do biológico e assim classificada como “mestiçagem”); e falava mais da casa e de nossa ambiguidade cultural do que da luta de classes e da famosa “revolução burguesa” que estaria ocorrendo, mas que parece muito difícil de ser partejada entre nós. Já o terceiro – explicaram-me complacentemente – era um mulato maneiroso que escrevia complicado e fugia da luta pela Abolição. Hoje, como se sabe, Machado de Assis foi reclassificado com certo estardalhaço como negro num gesto de anacrônica complacência democrática porque o próprio Machado e seus contemporâneos se tratavam como parte de uma elite que se via como branca, mas que, nos Estados Unidos ou na Europa seria negra, árabe ou asiática. Ter de Machado uma representação fotográfica como “branco” foi, assume-se, um escamoteamento da verdade. Como se fosse factível – usando o mesmo viés ideológico num racismo reverso – pensar do mesmo modo a respeito de alguém que age como “mulher” embora seja “homem”. Quem tem o direito de definir o seu gênero, a sua cor, etnia ou o seu temperamento? O sujeito ou nós que, como fascistas inconscientes, sabemos o que ele realmente é ou deveria ser?
Será que um “feio” pode dizer que é “bonito”? As categorizações são imutáveis e insensíveis a contexto histórico, situação e interesses?
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A homofobia foi criminalizada. E quem calunia por interesse político-partidário uma pessoa como homofóbico? Os acusadores neofascistas que só pensam em excluir devem também morder a língua?
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Do mesmo modo que se tem orgulho de não ler um jornal ou uma revista, fala-se de certos autores. Assim, ouvi dizerem abertamente: jamais abri um livro de Talcott Parsons, de Tocqueville ou de Freud. Eram reacionários e isso liquidava o assunto. Tal como na Inquisição, a fogueira continua acesa entre os “progressistas” com suas complacências.
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Nelas, incluímos também o silêncio tumular sobre a obra de certos autores ao lado da raiva de sua popularidade. O controle da vida intelectual e das indagações destoantes ou marginais sempre caracterizou um inocente autoritarismo nacional.
Ser autoritário sem saber, tendo – ademais e sobretudo – a complacência de ser democrata acusando os outros de reacionários é um dos paradoxos desses nossos tempos sombrios.
Fonte: “Estadão”, 05/03/2019