Esta é a época mais próspera da história. Com o poderoso avanço do processo civilizador no último século, a humanidade está melhor do que nunca. Pode parecer mentira, mas por toda parte as pessoas estão mais ricas e mais livres, têm mais educação, estão menos violentas e desfrutam de menor desigualdade social. Quem tem dúvida deve começar por consultas às fontes citadas em “A ordem do progresso“, texto que ocupou este espaço do Valor em 31/7/2018.
O problema é que “não existe almoço grátis”, como pontifica o velho e sábio provérbio. O preço de tão prodigioso salto tem sido calculado, mas falta muito para que essa conta possa ser fechada. Estão cada vez mais acuradas as avaliações sobre dois de seus mais graves componentes: o aquecimento global e a erosão da biodiversidade. Porém, isso ainda está muito longe de ocorrer com outra importantíssima parte da “dolorosa”: os retornos para a saúde humana dos gigantescos avanços das modernas cadeias agroalimentares, químicas, farmacêuticas e cosméticas.
Nocivos impactos das tendências de consumo legitimadas nos últimos setenta anos – período que os historiadores chamam de “A Grande Aceleração” – foram obscurecidos pelas sofisticadas proezas da medicina. Quando flagrados, demoram demais a ser admitidos. Veja-se a novela “glifosato”, o maior vilão dos agroquímicos, que agora está com os dias contados, graças à excelência do Poder Judiciário dos EUA, como expôs esta coluna do Valor em 29/8/2018.
Só que a tão denunciada dimensão cancerígena dos agrotóxicos é mero detalhe de encrenca muitíssimo maior, que deixa os médicos atônitos: os perigos dos desreguladores endócrinos, principalmente para a gestação, primeira infância e velhice. Razão pela qual merece especial atenção a reportagem “Estamos cercados“, reproduzida há dez dias pela edição brasileira do espanhol El País (17/6/19), corroborando três outras colunas no Valor, publicadas no ano passado: 27/6, 9/11 e 28/11.
Leia mais de José Eli da Veiga
Planeta dos estranhos
A cisão das duas culturas
Sustentabilidade avança pouco?
Talvez os médicos ainda não tenham tido tempo de assimilar os resultados das pesquisas que já indicam quão calamitosos podem ser muitos dos atuais hábitos alimentares e de cuidados pessoais (higiênicos e estéticos). Pois é recente a compreensão dos papéis desempenhados pela microbiota intestinal (antigamente chamada de “flora”). Só começou em 2007, com o estratégico “Projeto Microbioma Humano”, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA: hmpdacc.org/. Pior: a conexão intestino-cérebro sequer fazia parte, até há pouco, dos currículos das escolas médicas e de nutrição.
Tamanha defasagem dificulta o entendimento de ao menos duas cruciais hipóteses sugeridas por tais estudos. A primeira afirma que não houve tempo hábil para que os intestinos humanos se adaptassem a uma alimentação excessivamente carregada de açúcar, arroz, batata, carne, laticínios, milho, soja e trigo. Por isso, estes oito grandes vetores do agronegócio global estariam turbinando as piores bactérias intestinais, em detrimento das amigáveis, que deveriam, ao contrário, merecer toda a atenção e carinho.
A outra hipótese é ainda mais intrincada, pois se refere aos comportamentos de ilustríssimas desconhecidas: as lectinas. São proteínas muito presentes em cereais, leguminosas, batata-inglesa e alimentos oriundos de animais empanturrados por rações cheias de grãos. As lectinas têm forte propensão a atravessar a parede intestinal, causando fissuras, condição conhecida como síndrome do intestino permeável. Uma vez no sangue, elas confundem o sistema imune, dando origem a várias doenças autoimunes, artrites, cardiopatias, diabetes e demências, além de causarem perecimento precoce.
Os vários mecanismos desenvolvidos pela espécie humana para se defender de tão feroz artilharia, amenizando seus piores efeitos, seriam insuficientes para lhe garantir a imprescindível tolerância imunológica. Daí a necessidade de dar prioridade a alimentos com baixos teores em lectinas, o que só tornaria mais evidente a necessidade de se romper com os cânones de produção e consumo promovidos pela dominante agroindustrial dos negócios alimentares.
Então, só pode ser motivo de muito aplauso a publicação em português de um livro que – por mais polêmico que seja – tem o mérito de didaticamente apresentar ao grande público a intrigante dupla de hipóteses decorrente das atuais investigações sobre o microbioma humano: “O Paradoxo dos Vegetais”, de Steven R. Gundry (Paralela, 2019), tradução do best seller “The Plant Paradox” (HarperCollins, 2017).
Seu autor – uma das mais consagradas autoridades mundiais em cirurgia cardíaca – nos últimos vinte anos passou a se dedicar integralmente à nutrologia. Reviravolta muito bem explicada e justificada em seu novo trabalho, lançado em março: “The Longevity Paradox” (HarperLuxe, 2019). Mesmo que as prescrições desses dois livros sejam pouco persuasivas, isso jamais deveria impedir séria reflexão coletiva sobre suas bases analíticas, fundamentadas em preciosa bibliografia científica. A começar pelos médicos!
Fonte: “Valor Econômico”, 26/06/2019