“Muitas sociedades africanas têm tanto em comum com as sociedades tradicionais não africanas quanto entre si.” (Kwame Appiah)
No afã de resgatar um suposto “orgulho negro” contra o racismo histórico, muitos têm insistido num mito que pode vir a ser perigoso: a idéia de um pan-africanismo sustentado pela identidade racial. Para qualquer um interessado no assunto – e acredito que todos deveriam estar, pelos riscos envolvidos –, a leitura de “Na Casa de Meu Pai”, do filósofo Kwame Anthony Appiah, é altamente indicada.
Filho de pai ganês e de mãe inglesa, Appiah está numa posição privilegiada para tratar do tema em questão. Ainda assim, é submetendo os argumentos à luz da razão que ele pretende demonstrar como o racialismo tem sido prejudicial aos próprios africanos. Por trás da noção de pan-africanismo jaz o pressuposto de unidade política natural dos diferentes povos africanos. A Mãe África acaba sendo vista como berço da “raça” negra, de forma um tanto monolítica, ignorando as inúmeras diversidades dentro do continente. Para o autor, “os povos da África têm muito menos em comum, culturalmente, do que se costuma supor”.
Para Appiah, um dos primeiros legados incômodos desta visão falsa é a associação entre a opinião negativa ocidental em relação à África com a questão racial. A África, local de extrema miséria e palco de desgraças humanas infindáveis, ajuda a disseminar uma opinião negativa sobre os negros, resultado, em parte, do racialismo dos próprios defensores do pan-africanismo, normalmente cidadãos negros “exilados” no Novo Mundo, e criados na cultura ocidental.
A importância da cultura é muito maior que a da “raça”, eis o que sustenta Appiah. A África não é um lugar homogêneo, mas os africanos podem aprender uns com os outros, “tal como podemos, é claro, aprender com toda a humanidade”. O intercâmbio cultural e a crítica racional podem beneficiar todas as culturas, ajudar a “ensinar à raça única a que todos pertencemos”. A mentalidade coletivista de pensadores como Du Bois, que enxergaram a história como história de raças, comete o mesmo tipo de erro dos marxistas, que viram a história como história de classes. O simplismo e a arbitrariedade destes conceitos anulam qualquer realismo da análise.
Falar de “raça”, para Appiah, é “particularmente desolador para aqueles de nós que levamos a cultura a sério”. Além disso, o autor mostra como a ideologia do pan-africanismo depende justamente de traços culturais ocidentais: “A nostalgia nativista, em suma, é basicamente impulsionada pelo sentimentalismo ocidental que nos é tão familiar desde Rousseau; poucas coisas, portanto, são menos nativas do que o nativismo em suas formas atuais”. O pan-africanismo centrado na idéia de raça não passa de uma invenção não-africana.
Apesar de a fase do pré-colonialismo africano ser caracterizado pela ausência de algo como uma identidade africana, Appiah reconhece que começa a surgir tal fenômeno, como construção histórica. Mas, para o autor, sustentar tal identidade com base na idéia falsa de “raça” é perigoso. A “raça”, segundo ele, “nos incapacita porque propõe como base para a ação comum a ilusão de que as pessoas negras (e brancas e amarelas) são fundamentalmente aliadas por natureza e, portanto, sem esforço; ela nos deixa despreparados, por conseguinte, para lidar com os conflitos ‘intra-raciais’ que nascem das situações muito diferentes dos negros (e brancos e amarelos) nas diversas partes da economia e do mundo”.
Temos inúmeras identidades distintas, como “tribo”, religião, etc. As identidades são complexas e múltiplas. Usar somente uma delas como preponderante, e ainda por cima a racial, representa um grave erro. É possível defender o pan-africanismo sem o racismo. O projeto de um nacionalismo negro racializado vai contra a idéia moderna – e mais racional – de direitos individuais e humanos.
Fonte: Resenha para a revista Banco de Idéias, do IL.
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