Dois tipos de dúvida ainda cercam a investigação sobre a invasão das contas no aplicativo Telegram de dezenas de autoridades brasileiras, entre elas o ministro Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato.
O primeiro diz respeito à natureza da relação de Walter Delgatti, o preso que confessou a invasão, com os jornalistas do site The Intercept Brasil, primeiro a publicar o conteúdo das conversas atribuídas a Moro e aos procuradores. O segundo, às próprias conversas e ao destino que a Polícia Federal deverá dar ao material apreendido com Delgatti.
Delgatti afirmou em depoimento ter procurado espontaneamente o jornalista Glenn Greenwald, do Intercept, em virtude do seu renome. Contou ter chegado a ele por intermédio da ex-deputada Manuela D’Ávila, cujo número de telefone encontrara na conta de Telegram da ex-presidente Dilma Rousseff (outra vítima da invasão).
Em nota, Manuela confirmou a versão de Delgatti, mas deixou duas questões em aberto. Não ficou claro se a sugestão do nome de Greenwald partiu dela ou dele. Se foi ela quem o indicou, então sua participação foi maior do que parece. Também não ficou claro se ela tinha conhecimento de que o material fora obtido ilegalmente. Se tinha, cometeu omissão grave ao não denunciar Delgatti.
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Mais enigmático que o papel de Manuela é o do próprio Delgatti, cujo histórico policial levanta questões legítimas sobre sua motivação ao querer divulgar o material furtado do Telegram. Com várias passagens pela polícia, já foi preso por tráfico e falsificação, foi flagrado pelo menos duas vezes usando documentos falsos, é acusado de estupro e operações financeiras irregulares e já confessou a compra de moeda estrangeira para financiar armas.
Na declaração mais absurda de seu depoimento, disse viver de rendimentos, mas afirmou não saber a origem do dinheiro que alimenta suas aplicações. É possível que alguém com tal ficha corrida tenha agido motivado apenas pela ideologia ou pela vontade de revelar os podres da Lava Jato? Sem dúvida. É provável? Difícil acreditar.
O segundo tipo de dúvida foi precipitado pela intervenção indevida de Moro. Tendo tomado conhecimento do conteúdo do inquérito (como ministro, não deveria), passou a ligar aos alvos das invasões para adverti-los. A pelo menos um, garantiu que as conversas seriam destruídas. É justificável a preocupação com a privacidade daqueles cujos diálogos foram violados. Mas há interesse judicial no material apreendido, que só pode ser destruído mediante ordem de juiz.
Sabendo que o conteúdo capturado do Telegram está em poder da PF, a defesa dos réus da Lava Jato poderá instar a Justiça a atestar a autenticidade das conversas reveladas pelo Intercept e por outros veículos da imprensa, que põem em questão a imparcialidade de Moro.
Ele, o procurador Deltan Dallagnol e outros integrantes da força-tarefa da Lava Jato insinuam que os diálogos podem ter sido manipuladas. Agora, ficou fácil saber a verdade. Não é necessário violar a privacidade de ninguém para, a pedido de um juiz, a polícia atestar a veracidade das conversas que já foram ou venham a ser publicadas e, se for o caso, destruir as demais. De todo modo, como envolvem autoridades, a batalha promete chegar ao Supremo.
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O material apreendido também é necessário para a própria investigação do elo entre Intercept e Delgatti. Num diálogo revelado pela revista Veja (uma das parceiras do Intercept na divulgação), alguém identificado como “fonte” nega ter sido o responsável pela tentativa de invasão verificada por Moro em seu celular no último dia 4 de junho. Se Delgatti confessou à PF, por que negaria a Greenwald, com quem se comunicava, segundo consta, desde 12 de maio? Ou há outra “fonte”?
Oficialmente, o Intercept afirma ter recebido o material de “fonte anônima” e se nega a falar sobre seus informantes. À PF, Delgatti afirmou que adotou o mecanismo de entrega numa caixa-postal segura da internet por sugestão do próprio Greenwald. Dado o histórico, porém, a palavra de Delgatti não bastará para dirimir as dúvidas que persistem.
Fonte: “G1”, 29/07/2019