Um papel social importante é regularmente assinalado.
Na semana que passou, comemoramos o seu lado positivo.
Mas, mesmo vivido pelo avesso, o papel é discutido, como ocorre nos tristes casos em que o pai destrói o filho, que o castiga em excesso ou, pior que isso, que o renega. No lado simbólico e exemplar, invocamos o Pai para glorificá-lo na sua projeção como o Pai Eterno que tudo criou; ou o pai mortal que, sendo regular e mediocremente bom e mal, como é o caso em geral, ajuda — é certo — a vender cuecas e gravatas, mas também a pensar em certas coisas…
De papai guardei duas memórias.
Ele não foi um homem de palavras ou canções.
Pouco disse, muito agiu. Sempre no sentido de preservar e cuidar da família (“nada pode faltar na minha casa!”); jamais pulou a cerca: foi o maior marido “caixão branco” que vi na minha vida; nada me disse quando, um dia, tive uma dificuldade sexual corriqueira (e fundamental) que nos torna ternamente meninos diante das mulheres; mas, um dia, quando notei a janela do meu quarto ser forçada, testemunhei sua coragem quando ele, de um salto, escancarou-a no intuito de pegar o ladrão que tentava violar o nosso lar.
Quando entrei no ginásio numa Juiz de Fora de bondes e apenas duas piscinas (a do Sport e a da casa do Mario Assis onde, com o Mauricio Macedo e o saudoso Naninho, tomávamos banho depois de peladas de basquetebol), meu pai, um tanto solene, presenteou-me com uma caneta Parker. Nela, estava incrustado o meu nome. Aquela caneta levou-me à escrita — um desejo e comando oculto daquele pai provedor e elegante. Ali eu recebi a pena que me livra, com as mentiras que conto, de todas as penas desta vida.
Quando, nos idos de 1963, para o risco de Harvard, ia partir para uma Nova Inglaterra fria e desconhecida, papai presenteou-me com um sóbrio sobretudo que era uma confirmação de autonomia, era um voto de sucesso para a carreira que tomava corpo e era, eis o que vejo hoje com olhos marejados de lágrimas, a definitiva, a tão necessária — a tão magnânima bênção paterna. Pois o que é a “bênção” senão a prova explícita de um amor incondicional e, por isso mesmo, pronto para sair de cena? Esse casaco me agasalhou nas nevascas.
Deu-me o calor e o conforto moral contras as covardias da minha insegurança. Usei-o quando fiz meus exames para o doutoramento; vesti-o quando caminhava nas ruas de Cambridge e, solitário, aprendia a ser antropólogo. Ou antropófago dos fatos da vida.
Ao escrever e tentar me proteger, estou com papai. Bonito, forte, amante da praia e dos esportes. Fiel à sua família e à sua casa. Tão honesto e puro que, mesmo sendo fiscal do consumo, só nos legou uma casa. Nós, seus cinco filhos e filha, o enterramos com um choro de orgulho e amor.
Fôramos todos abençoados por esse baiano que, entre muitas coisas, jamais visitou os Estados Unidos, pois — como me disse uma vez — jamais poderia por os pés num país que não gostava de negros.
Um dia eu virei — e digo-o porque é importante — jamais deixei de ser pai.
Estava escrito e, a despeito de minhas duvidas, determinado. Segui a mesma sina e tive dois filhos e uma filhinha. A metade da prole paterna, como manda o figurino de um rapaz que queria ser pai e tinha aspirações político-intelectuais.
Como político-intelectual queria ser a luz dos explorados e era favorável ao que então se chamava de “reformas de base” e hoje dizem ser o PAC. E que jamais saem do papel. Tinha fantasias de ser um grande “conscientizador” (eis uma outra palavra na época) e sair pelo mundo, renunciando-o, para exercer a carreira dos comunistas que — naquele momento — figuravam como andarilhos e santos. Não sei onde foram parar. Como pai e marido, segui o pai e como pai fui menos calado e certamente tão insatisfatório e faltoso quanto Renato, meu genitor. Pois quem como pai é pleno, se a plenitude supõe uma igualdade que o papel de doador da vida, instaurando uma dívida inafiançável, suprime de saída? Como ser pai (ou mãe) se num momento de nossas vidas fomos deuses e o nosso êxtase — num leito que também é o Jardim do Éden — produziu o sopro da vida? Quando meu filhos nasceram, eu me senti mais como um deus do que como um mero reprodutor. Tinha uma consciência tão forte, tão brutalmente presente da minha capacidade de conceber vidas que esse dom englobava a mera paternidade social e cartorial de dar apenas o nome, ao lado da transformação de marido em papai.
Sou hoje avô, ou, como falamos carinhosamente no Brasil, sou pai duas vezes. De fato, testemunhar o nascimento dos filhos dos filhos é uma bênção: um raro e bíblico privilégio.
Os filhos dos filhos nos fazem reviver o dom da vida sendo reproduzida pelos que fizemos. Pode haver algo mais gracioso? Mas em verdade eu vos digo, queridos leitores. Não há nada, mas nada mesmo mais abençoado do que ter a consciência de ser um doador de vidas e por elas responder. De ter o poder de distribuir a Bênção do amor e de, assim, desejar do fundo do oração, que todos os seus filhos tenham uma longa vida e sejam muito — sejam eternamente felizes.
Fonte: Jornal “O Globo” – 11/08/10
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