Estamos no 10º ano de crescimento da economia global, ao ritmo médio de 3,8% ao ano, um dos períodos mais longos de crescimento, embora a velocidade não seja extraordinária. Há, todavia, receios que este período tenha chegado ao fim. Isto ficou claro nos últimos dias pelo comportamento do mercado de renda fixa norte-americano, um fenômeno conhecido como “inversão da curva de juros”. Embora corra o risco de ter perdido todos leitores com a frase anterior, o nome é mais incompreensível do que o fato propriamente dito.
Embora falemos de “taxa de juros”, no singular, há inúmeras taxas de juros em qualquer economia. De particular interesse são as taxas a que o governo, em geral percebido como o menor risco de “calote”, consegue tomar recursos emprestados no mercado por meio da venda de seus títulos, promessas de pagamento em diferentes prazos, de poucos meses a muitos anos.
Sob condições normais, espera-se que empréstimos ao governo por um período curto custem menos do que por períodos longos, ou seja, a “curva de juros”, que associa cada prazo de vencimento dos títulos do governo a uma taxa de juros, seria positivamente inclinada.
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Hoje, porém, não é isto que se observa nos EUA: a taxa de juros para empréstimos de 10 anos (em torno de 1,5% aa) é menor do que para empréstimos de 1 mês (ao redor de 2,0% aa), ou seja, a curva está “invertida” na comparação com o usual. A diferença não é enorme, mas trata-se de acontecimento raro, que tem previsto momentos de recessão com bastante precisão.
A razão, imagina-se, é a reação esperada do Federal Reserve (Fed), o banco central norte-americano. A taxa de juros básica da economia para empréstimos de prazo muito curto está fixada pelo Fed em 2,00-2,25% ao ano, mas, em caso de recessão, espera-se que a reduza para estimular a economia e tome outras medidas para baixar as taxas de juros de títulos de vencimento mais longo, ou seja, o mercado de renda fixa antecipa que as taxas de juros no futuro serão menores que no presente e, portanto, as taxas de títulos mais longos cairão em relação às taxas de títulos mais curtos.
Isto não significa que a “inversão” da curva de juros causa a recessão, mas alerta para percepção dos investidores sobre o risco de recessão. Nada garante que o mercado de renda fixa esteja correto acerca desta percepção, embora seu índice de acerto seja alto.
Há sinais preocupantes. O comércio global, que crescia a um ritmo próximo a 5% ao ano até abril do ano passado, desacelerou-se para 1,7% em maio deste ano, enquanto a produção industrial global mostra processo similar (de 3,9% para 1,9%) no mesmo intervalo, provavelmente em resposta à “guerra comercial” (a imposição de tarifas e retaliações).
Na mesma linha, indicadores de curto prazo, notadamente o Índice Global de Gerentes de Compra (PMI, que sugere expansão quando registra acima da marca de 50 e contração em caso contrário) tem ficado abaixo da linha d´água desde maio, pela primeira vez desde junho de 2009, sob o efeito da economia europeia. A Alemanha, em particular, começa a mostrar sinais de fraqueza na esteira da desaceleração do crescimento do comércio global.
O mesmo ocorre com as exportações chinesas, cujo ritmo anual de expansão caiu de mais de 10% em meados do ano passado para menos de 4% em junho deste ano, com reflexos também sobre seu desempenho industrial.
Já nos EUA propriamente ditos, os sinais são mais ambíguos. A produção industrial caiu nos últimos trimestres e mesmo o PIB desacelerou visivelmente, mas o mercado de trabalho segue bastante aquecido, seja no ritmo de criação de empregos (140-150 mil/mês), seja na manutenção de taxas reduzidas de desemprego ao redor de 3,7%, próximas à mínima histórica, o que não impediu o Fed de reduzir a taxa de juros em sua última reunião, precisamente como “seguro” contra o risco de recessão.
Apesar da ambiguidade, o risco de recessão deve ser levado a sério. O ciclo econômico não foi abolido e a insistência na “guerra comercial” por parte de um governo cujo chefe não parece ter o entendimento claro do que está em jogo eleva as chances de chegarmos ao fim do longo verão.
Não imaginamos, contudo, algo tão grave como foi a Grande Recessão de 2007-09, principalmente no final de 2008, quando a economia global entrou em colapso. Não há os mesmos excessos financeiros de 10 anos atrás e o sistema bancário se encontra mais sólido, de modo que o risco de interrupção total do crédito, que precipitou os piores efeitos da Grande Recessão, parece ser incomparavelmente menor hoje. Caso a recessão se materialize, deverá se assemelhar às que ocorreram antes de 2007-2009, tanto em termos de duração quanto profundidade.
O principal problema é a “falta de munição” dos bancos centrais. Nas últimas recessões os BCs tiveram, de maneira geral, bastante espaço para reduzir a taxa básica de juros antes de chegar à “barreira” das taxas negativas, o que está longe de ser o caso hoje. Mesmo o Fed, o banco que mais longe foi em termos de normalização da política monetária, registrava, até o mês passado, taxa de juros no intervalo 2,25-2,50%, enquanto os demais apresentam taxas de juros ainda mais baixas.
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Neste sentido, em caso de recessão muito provavelmente veremos novas rodadas de “expansão quantitativa”, isto é, de recompra de títulos do governo por parte dos BCs, com o objetivo de reduzir as taxas de juros mais longas.
Isto dito, se a recessão for relativamente moderada e a política monetária global for relaxada, os efeitos sobre o Brasil devem atuar em direções opostas. O país perderá fôlego exportador, seja pelo menor crescimento, seja pela redução de preços de commodities. Por outro lado, não deveremos ver grandes pressões de depreciação do real, nem pressão para cima nas taxas de juro, pelo contrário.
Assim, a dinâmica de recuperação da economia brasileira ainda dependerá principalmente do que for feito na frente doméstica, em particular no que se refere às reformas que alterem o panorama sombrio para as contas públicas nos próximos anos.
Fonte: “A Mão Visível”, 03/09/2019