Uma das questões do primeiro dia de prova do Enem se referia a Hannah Arendt, pensadora alemã que se debruçou sobre os desafios de seu tempo e tentou entender como pessoas com acesso a uma educação de qualidade puderam perpetrar terríveis atrocidades contra grupos humanos inteiros e fundar propostas de poder em que o ódio organizado ao outro fosse o elemento que desse unidade a uma nação.
O totalitarismo, descrevia ela, tanto na vertente nazista quanto na do stalinismo instalado na União Soviética, tirava parte de sua força de um sistema de propaganda baseado em notícias falsas e na criação de um movimento de suporte ao regime, numa visão semirreligiosa, em que as aspirações dos indivíduos que o integravam eram esmagadas e substituídas por uma lealdade acrítica não só ao líder, mas à causa que ele personificava. No mesmo sentido, os membros do núcleo central do movimento, embora soubessem da não veracidade de pretensões vocalizadas pelo líder, julgavam importante confirmá-las para o avanço de ideias reservadas aos “iniciados”.
Nas duas vertentes, um ponto em comum: o indivíduo, que havia emergido com o Iluminismo, é sacrificado a projetos de poder que se nutrem de ressentimentos da população para dar-lhe um sentido coletivo e de pertencimento, centrado no combate a inimigos ficcionais. Assim, puderam os alemães reduzidos à pobreza e à perda do orgulho nacional, adquirido havia menos de um século, pensar que o futuro a eles pertencia, que os culpados de sua miséria, a “conspiração judaico-marxista”, deveriam ser eliminados e que a grandeza da raça, expurgada de não arianos, resgataria o prestígio de uma nação que deveria se colocar acima das outras.
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Da mesma maneira, Stalin, embora adversário do líder nazista, para consolidar seu poder, centrava sua retórica contra inimigos reais ou fictícios, inclusive um pretenso complô judaico, e na necessidade de controlar pensamentos e desejos. Ter ideias próprias e espontaneidade individual, nos dois casos, aparecia como um perigo a ser evitado, de preferência por autocensura.
Não vivemos hoje mais em regimes totalitários, mas o estudo cuidadoso da história pode nos ajudar a evitar a repetição de erros passados. Afinal, o ressentimento e a perda de sentido de pertencimento vigentes podem ser mobilizados por políticos irresponsáveis e levar-nos a tragédias civilizatórias.
A base da civilização que construímos ao longo dos anos, com todas as dificuldades da democracia, repousa no respeito a cada indivíduo e a um projeto coletivo que estimula a preservação da diversidade. E isso precisa ser ensinado às novas gerações.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 8/11/2019