O agora ex-governo de Evo Morales, assim como o de seu irmão bolivariano Nicolás Maduro, mostra, em ato, como se comportam os “socialistas” quando capturam o Estado, tudo fazendo para destruir as suas instituições. Nada é ao acaso, salvo a participação popular que teima em dizer não à tirania.
Os “socialistas do século 21” são uma mera prolongação dos “comunistas do século 20”, em suas várias vertentes leninistas, stalinistas, maoistas, castristas e outras, todas tendo se traduzido por vários tipos de devastação em seus respectivos países, em alguns deles com milhões de mortos. Sua cartilha de tomada do poder estava ancorada num partido hierarquizado, que se colocava política e militarmente como a vanguarda da dita “classe proletária”, embora esta, quando aparecia, nada mais fosse que simples coadjuvante.
A democracia era sumariamente descartada enquanto instrumento de dominação da “burguesia”, não devendo sequer ser seguida, salvo nos casos em que servisse aos desígnios do partido, em sua estratégia de conquista do Estado. Não tinha nenhum tipo de valor universal. Até eleições eram desconsideradas, sendo, então, privilegiada a violência como meio de captura do poder. A violência veio a ser então considerada como “moralmente” válida, pois seria capaz de fazer nascer um bem maior, uma “sociedade sem classes”.
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Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, o mundo comunista veio abaixo também, com todos os seus horrores e mazelas sendo novamente escancarados, além dos já conhecidos, como os crimes stalinistas revelados em 1956, no célebre Relatório Kruchev. Seguiu-se um período de anomia na esquerda, com boa parte dela se voltando para lutas identitárias, ambientais e de minorias, reciclando-se, nesse sentido, numa aceitação da democracia, tal como os social-democratas já o haviam feito desde o início do século 20.
Outra parte, porém, permaneceu fiel ao comunismo, tentando, por outros meios, criar uma nova imagem de si mesma, fundada na velha, mas procurando dela desvencilhar-se, pois seu legado tinha de ser ocultado. Surgiu então na América Latina o tal do “socialismo do século 21”, idealizado por Hugo Chávez, logo logrando adeptos na Bolívia, em outros países e encantando também parte da esquerda brasileira. Distingue-se do seu irmão do século 20 num ponto importante: afirma defender a democracia, embora a despreze. A democracia é usada para a sua própria destruição.
No entanto, tampouco aqui houve inovação. Os “socialistas do século 21” abandonaram, nesse quesito, o leninismo para adotarem o nazismo. Hitler, após o seu golpe fracassado em 1923, deu-se conta de que a violência enquanto instrumento de conquista do poder não seria eficaz. Teria de fazer o jogo da democracia para eliminá-la. Montou um partido e recorreu a milícias, sendo nessa época a SA a sua ferramenta. Numa estratégia bem-sucedida, chegou à posição de chanceler em 1933 e logo após, com a morte do presidente Hindenburg, à de chefe de Estado. Dali em diante nada mais fez do que destruir as instituições democráticas, nisso empregando amplamente a violência. Algumas ditas eleições subsequentes nada mais serviram do que para referendar o seu poder.
Hugo Chávez, na Venezuela, e seu sucessor, Nicolás Maduro, chegaram ao poder em eleições. Progressivamente foram eliminando as liberdades, sobretudo a de imprensa e dos meios de comunicação em geral. Paralisaram o Poder Legislativo e tentaram de todos os modos domesticá-lo. O Poder Judiciário, em particular o Supremo Tribunal, tornou-se mero apêndice do Executivo, que passou a legislar por decreto, tornando-se ele mesmo fazedor de leis. As milícias tomaram conta das ruas, as Forças Armadas foram aparelhadas, tendo sido a corrupção um de seus instrumentos. Plebiscitos e referendos seguiram sendo utilizados, sempre e quando servissem a esses ditadores de aparências democráticas. Em certo momento, a esquerda brasileira chegou a extasiar-se com eles, considerando-os exemplos de democracia! O resultado salta à vista: um país destroçado, economicamente falido, o crime correndo solto, as pessoas fugindo da miséria, tudo em nome, certamente, do socialismo!
Evo Morales compartilhou os mesmos princípios, embora tenha sido menos errático na gestão da economia, sabendo pragmaticamente manter-se no poder, promovendo políticas sociais. Acontece, porém, que a democracia é para ele um simples instrumento de conquista e conservação do poder. Só é de serventia enquanto servir aos seus propósitos. Em todo o seu período de governo, sempre desprezou as instituições democráticas. Quando da Constituinte, proibiu a entrada no recinto legislativo de seus opositores com o objetivo de ganhar a maioria parlamentar.
Alterou sistematicamente a Constituição para ter a garantia de reeleições. Num último referendo, quando a população foi consultada sobre se seria favorável a mais uma reeleição dele, a resposta negativa foi sumariamente desconsiderada, como se a voz do povo nada valesse. Se tivesse ganho, teria elogiado a decisão democrática, como perdeu, considerou-a sem validade. Com ministros submissos do Supremo, “garantiu” uma nova “eleição”, num arremedo de constitucionalidade. Não contente, ainda fraudou as eleições, uma vez que estava perdendo na contagem dos votos. As suas convicções democráticas deveriam constar de uma folha corrida policial.
Diante das manifestações de rua, foi forçado a renunciar, levando consigo seus sucessores imediatos, o vice-presidente e a presidente do Senado. Seu objetivo era produzir o caos, almejando um outro golpe para voltar ao poder. Com as ruas e as oposições resistindo, produziu o discurso de que foi objeto de um “golpe”. O golpista brada contra um suposto golpe, por ele mesmo engendrado. É a célebre expressão do ladrão gritando “pega ladrão!”.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 25/11/2019