A eleição de hoje no Reino Unido tem uma importância que transcende o país. Se, como preveem as pesquisas, levar à ratificação do acordo de divórcio fechado pelo premiê Boris Johnson com a União Europeia (UE), marcará o primeiro encolhimento na história do bloco comercial – e um retrocesso inequívoco no caminho da globalização adotado pelo mundo desde os anos 1990.
Não se espera mais que a UE se esfacele. O enredo tortuoso do Brexit espalhou temores. Todos aqueles países que tentarem enveredar por senda semelhante sabem doravante que estarão diante de uma via dolorosa. Projetos de Italexit, Frexit, Polexit e congêneres foram devida e silenciosamente engavetados pelos partidos nacionalistas do continente, hoje interessados mais naquilo que o italiano Matteo Salvini descreve como mudar a UE “por dentro”.
Mas o risco menor de esfacelamento não significa que as palavras de Salvini sejam vazias, nem equivale à inexistência de riscos de outra natureza, mais insidiosos e sutis. O avanço do projeto nacional-populista já exerce efeito no comércio internacional. Além do Brexit, a guerra comercial entre China e Estados Unidos e o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio (OMC) representam, se não um nocaute, golpes que atordoam e fazem balançar a globalização.
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O maior vertedouro do protecionismo é hoje o país que, desde o final da Guerra Fria, impusera o livre-comércio e a democracia como condições do desenvolvimento global: os Estados Unidos. A eleição de Donald Trump, meses depois do plebiscito do Brexit, marcou a inflexão nacionalista. A disputa tarifária com a China ameaça a integração americana com a Ásia, motor do crescimento global neste século.
O combate de Trump à globalização se revela em seu desprezo pelo arcabouço institucional erguido sobre os escombros da Segunda Guerra. Dias atrás, saiu às pressas de uma reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em Londres, logo depois que vazou um vídeo em que outros líderes o ridicularizavam. Nesta semana, deixou caducar o prazo para indicar dois juízes americanos que manteriam funcionando o painel de resolução de disputas na OMC. Doravante, brigas comerciais terão de encontrar outro mecanismo de solução.
O nacionalismo de Trump encontra em êmulo britânico na figura descabelada de Boris Johnson. Apesar do sotaque inconfundível da elite que passou pelas melhores escolas, ele deverá sua vitória provável aos distritos nas zonas operárias do Nordeste, território tradicionalmente dominado pela esquerda sindical do Partido Trabalhista. Nada muito diferente do avanço trumpista pelas áreas industriais no Meio-Oeste americano, região antes dominada por democratas.
É legítimo debater se o êxito do discurso nacionalista, chauvinista e protecionista se deve mais ao fracasso da globalização em distribuir a riqueza ou à dificuldade de convencer o público de que integração e imigração trazem mais oportunidades que ameaças, de educá-lo para aproveitá-las em vez de recair em nativismo, racismo e em suas variantes. A discussão sobre as causas do avanço do nativismo e do nacionalismo – se econômicas ou culturais – se torna, contudo, ociosa diante da realidade desse avanço.
Boris promete que, livre das amarras da UE, o Brexit trará uma era sem paralelo de integração comercial com outros países, revivendo os bons tempos do Império Britânico. Aposta suas fichas num tratado vantajoso com os americanos. Nenhum economista ou analista sério das relações comerciais tem a menor ilusão a este respeito. O único tratado de livre-comércio que o protecionismo trumpista aceitaria fechar resultaria numa espécie de Império Britânico às avessas: os Estados Unidos no papel de metrópole; o Reino Unido, no de colônia.
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A saída provável da UE trará ainda o risco de esfacelamento do próprio Reino Unido. Na Irlanda do Norte, a traição de Boris aos unionistas para fechar seu acordo de divórcio fez ressuscitar o nacionalismo. Até entre os próprios unionistas – tradicionais defensores ferrenhos da ligação com a Inglaterra e da sujeição à Coroa britânica –, a unificação com a República Irlandesa passou a ser vista com outros olhos. A Escócia luta por um novo plebiscito para poder se separar do reino e manter-se na UE.
As forças econômicas da integração, que mantêm a Grã-Bretanha unida há séculos e funcionam como sistema nervoso e circulatório da UE, permitem encarar com certo ceticismo os cenários mais catastróficos. Mas a própria realidade do Brexit, a guerra comercial e a paralisia da OMC demonstram o estrago que o nacionalismo pode causar.
Outro Johnson, não Boris, mas Samuel Johnson, o incomparável cronista londrino do século XVIII, descrevia o nacionalismo como “último refúgio dos canalhas”. Quem tem acompanhado a política dos dois lados do Atlântico nos últimos anos não tem muita dúvida de quão acertadas e infelizmente proféticas foram tais palavras.
Fonte: “G1”, 12/12/2019