O ano novo, com um número que os magos e bruxos adoradores de São Cipriano afirmam ser mágico, apenas começa e já realiza desejos. Um amigo abandonou a esposa não por outra mulher, mas por dinheiro: juntou o suficiente para voltar à vida leve, livre e solta de solteiro.
Eu vejo os rituais de passagem do tempo como maneiras de cortar a água, pois se o tempo, como uma melodia, é contínuo e, sendo líquido, penetra em todas as fendas e frestas, ligando tudo como um rio interminável, em muitas sociedades os ritos de final de temporada são feitos de estrondos, apitos, tiros e batidas. Os fogos de artifício, precursores das grandes bombas mortais das guerras, retornam com inocência e, para a nossa alegria, transformam a noite num misto de alvorada e crepúsculo colorido e festivo, embora – é claro – seus brilhos sejam fugitivos como um beijo roubado ou um orgasmo. O estouro interrompido dos fogos traduz o rompimento daquilo que, inevitavelmente, é contínuo. Rituais de marcação do tempo são como feridas…
Um mestre de Oxford, Rodney Needham, religou percussão com transição como uma tentativa de cortar água, algo que Thomas Mann advertia ser impossível na vida real. Mas o que é o real para a fantasia, a fabulação, a vontade racionalizada pela mentira e a ideologia subjugada pelo projeto? E como estar certo de que se progrediu ou regrediu sem promover o represamento da cachoeira do tempo, que é o senhor da vida, classificando seus períodos em termos de avanço ou de atraso?
Para nós, o tempo tem, além do fato óbvio de sua passagem, valor, pois estávamos certos que o futuro seria melhor do que o passado, algo negado veementemente por um estilo de vida consumista que o põe em dúvida. Contudo, continuamos a contar o tempo, somando-o e não de modo alternado como se faz em sociedades que alternam verão e inverno ou chuva e estio. A repetição neutraliza o tempo concebido de modo progressivo, interpretado como adiantado ou atrasado.
Os rituais de passagem do tempo são momentos de luto ou de arrependimento pelo que se foi e, simultaneamente, tempos de previsão e de esperança. Momentos intermediários nos quais rotinas e destinos são rompidos – e os Joãos de Deus da nossa vida dita tecnológica e racional dão os seus palpites e enxergam um futuro que nós, os comuns, apenas esboçamos.
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Minha tia Amália contava uma história. Um pescador e sua mulher viviam num chiqueirinho e, um dia, o marido pescou um peixe que era também um príncipe encantado capaz de realizar desejos. Ao saber disso, a mulher o fez pedir ao peixe uma boa casa imediatamente obtida. Mas logo ela quis um castelo e, em seguida, um reino e um império! Sonhos realizados são como mentiras que viram crenças.
Prontamente, a mulher do pescador pensou em ser papa. O marido hesitou, mas sendo ela rei imperador, ele era seu escravo e o peixe encantado fez a esposa virar papa, reunindo o poder temporal com o espiritual na sua pessoa.
Agora, com seus desejos de grandeza e riqueza realizados, ela não dormia: o sol lhe atrapalhava o sono. Sem vacilar, ela demandou ser a senhora do Sol e da Lua. O marido, sereno como quem sabe para onde vão parar os desejos e os surtos, contou esse onipotente desejo ao peixe.
Vá para casa, disse o peixe, e vivam novamente no seu chiqueiro. É nele que eles estão até hoje.
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Titia Amália contava essa fábula dos irmãos Grimm, que moldaram a língua e a identidade alemãs. No conto, nota-se o espírito de Schopenhauer, de Nietzsche, de Freud, de Thomas Mann e desse vosso escriba niteroiense no sentido de que a vontade é insaciável e, entregue a si mesma, ela conduz no mínimo à repetição. O desfecho ingrato não deve ser lido como castigo, mas como uma advertência de que não se pode ter tudo.
Numa versão brasileira, o pescador e a mulher concordam, significativamente para a nossa sociedade hierárquica, que é melhor permanecerem pobres resignados e felizes na velha cabana.
Se o leitor perguntar onde fico, respondo com Thomas Mann que não queremos uma coisa porque a reconhecemos como boa, mas a desejamos boa porque a queremos. Com todo o sofrimento eventualmente decorrente dessa vontade.
Feliz 2020!
Fonte: “O Globo”, 8/1/2020