Vou tratar aqui de um assunto que, em condições normais, deveria ser objeto das colunas de economia. Entretanto, penso que o contexto em que o tema está inserido justifica tratar dele nesta página, por ser algo emblemático, que transcende a dimensão técnica.
Quero antes, porém, fazer uma digressão. Aos 57 anos de idade, eu me tornei, se é que cabe a expressão, um “incrementalista”. Ao contrário da visão natural que muitos têm na juventude – e eu me incluía nisso há 30 ou 35 anos –, quando se acredita na possibilidade de as sociedades sofrerem grandes rupturas transformadoras, hoje estou convencido de que os avanços se dão gradualmente, por etapas. Nesse sentido e com alguma boa vontade, creio que se pode fazer uma leitura favorável da maioria dos nossos governos depois de encerrado o ciclo militar: José Sarney soube conduzir uma transição complexa, quando o País recuperou plenamente as liberdades democráticas; Fernando Henrique Cardoso foi um estadista que criou as condições para que o sucesso do Plano Real fosse um divisor de águas na História do Brasil; e a gestão de Lula da Silva foi marcada por avanços sociais que nem seus críticos – e eu fui um deles – ousariam negar. Não considero as gestões de Fernando Collor, Itamar Franco e Michel Temer nesse balanço porque cada um deles ficou pouco tempo no poder, embora os três tenham tido sua parcela de mérito – Collor pela mudança de modelo econômico, Itamar pelo lançamento do Plano Real e Temer pelas reformas econômicas. E, definitivamente, eu não colocaria a presidente Dilma Rousseff no mesmo grupo dos anteriores, pelo fato de que o seu governo foi um absoluto desastre, sob qualquer ângulo que se olhe – social, econômica ou politicamente – e ficará como um traço esquecível nos livros de História, perdido nas brumas do tempo.
Por maiores que tenham sido os progressos naqueles governos, eles foram parciais. Sarney avançou na política, mas seu governo acabou num pesadelo hiperinflacionário; Fernando Henrique mudou o Brasil, mas a economia em 2001/2002 era ainda extremamente vulnerável; e Lula “surfou” uma onda favorável, mas sem ter feito maiores investimentos e deixar uma economia sólida para depois da sua gestão – ao contrário, em 2010 todo tipo de desequilíbrio foi se acumulando, para estourar posteriormente.
Nessa perspectiva, entendo que a grande tarefa da equipe econômica chefiada pelo ministro Paulo Guedes, na minha modesta opinião, é deixar o País “tinindo” para crescer bem ao longo da próxima década. A situação externa é razoável – ainda que o aumento do déficit em conta corrente inspire cuidados; o Brasil está com uma taxa de juros que apenas dois anos atrás seria considera inacreditável; e com a reforma previdenciária aprovada abre-se, pela primeira vez em bastante tempo, a possibilidade de pôr ordem nas contas fiscais e, daqui a algum tempo, a relação dívida pública/produto interno bruto (PIB) passar a declinar. Poderemos ter então “regras do jogo” bastante parecidas com as de economias estáveis. Em tais condições, o Brasil poderá ter pela frente uma década próspera.
É nesse contexto que se insere o que vem a seguir.
A meta de inflação para 2019 foi de 4,25% e o Conselho Monetário Nacional (CMN) já definiu as metas de 2020 a 2022, com quedas graduais de 25 pontos por ano até 3,5% em 2022. Pelo andar da carruagem, a lógica seria reduzir outros 25 pontos na decisão a ser tomada em junho acerca da meta de 2023. A proposta aqui feita busca ir um passo além: propor uma meta permanente de 3% já a partir de 2023. Os indicadores de inflação, vale ressaltar, têm sido, de modo geral, excelentes há bastante tempo: a inflação vem tendo uma trajetória benigna desde 2017, a média dos núcleos também tem sido muito bem comportada e a expectativa Focus para 2020 é de uma taxa inferior à meta.
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Embora eu tenha sido um defensor do gradualismo da postura do CMN no processo de redução da meta de inflação na forma de “escadinha”, penso que, à luz dos números observados nos últimos anos, não há mais razões para que essa estratégia se mantenha. Assim, na sua decisão de junho, sugiro que o CMN avalie seriamente a possibilidade de definir já a meta de 3% para 2023, tornando-a permanente a partir de então. Considerando que o Banco Central toma as suas decisões olhando para um período de 18 a 24 meses à frente, na prática o País teria uma transição de alguns meses e, a partir do começo de 2021, as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) teriam como referência um alvo de inflação de 3%, como ocorre na maioria dos países emergentes com metas de inflação. Com expectativas ancoradas, uma taxa Selic em torno de 4% a 5% e a ajuda de novas medidas fiscais para tornar viável uma trajetória favorável da dívida pública, o Brasil teria todas as condições de sinalizar para os investidores que nunca as chances desse estado de coisas se prolongar indefinidamente terão sido tão elevadas. Assim, a meta de inflação seria de 3,5% para 2022 e de 3% para 2023. E a partir de então não haveria mais o ritual de definir a meta todo mês de junho, porque ela já seria dada.
Quase três décadas depois do lançamento do Plano Real, em junho de 1994, poderemos dizer, então, que a transição até a estabilidade terá sido completada. FHC fez um governo admirável sob muitos aspectos, mas no seu último ano a inflação foi de 13%. Lula avançou nesse campo, mas tendo tido tudo ao seu alcance para dar um passo decisivo na matéria, contentou-se em conviver seis anos com uma meta de 4,5%. E Dilma Rousseff nos legou uma inflação de 11%, que caiu para 4% com Temer. Agora, chegou o momento de colocar o “último prego no caixão” dessa assombração brasileira e “cravar” uma meta final de 3%. No continente da inflação da ordem de 50% da Argentina e da hiperinflação da Venezuela, seria um feito notável.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 15/1/2020