Vi muitos coringas lendo nos gibis as aventuras de Batman & Robin e indo ao cinema para ver suas réplicas e realidades, pois o que salva ou destrói um filme é precisamente o seu ultrarrealismo tão complicado de fantasiar.
A novidade desse filme de Todd Phillips sobre o Coringa é a sua centralidade. O dualismo do “mocinho” contra o “bandido” – nos clássicos americanos e bem longe de nós, brasileiros, e da lei contra o crime – não existe nessa versão e talvez isso seja um sintoma da nossa descrença no progresso e no final feliz, quando o Bem triunfa sobre o Mal e o progresso engloba a miséria. Afinal, temos dois papas e os sinais de que não há sistemas perfeitos são claríssimos.
Como o filme mostra, o Bem e o Mal coexistem dentro de nós, tal como o aquecimento global é um hóspede não convidado da nossa tecnocracia consumista e globalizada.
Nesse filme, testemunhamos a transformação de Arthur Fleck num misto de ressentido e rejeitado vingador social em paralelo à indiferença da patologia urbana capitalista do Bruce Wayne de Gotham City. A cidade que precisou do Batman (ao contrário do Coringa – morcegos não riem…) para deixar de ser uma combinação do pior da Londres de Jack, o Estripador, com o Rio de Janeiro de hoje. Uma urbe na qual o pior é o melhor.
Impressionei-me com a ausência do dualismo do Bem e do Mal, pois, se os filmes americanos reiteram uma história de heróis que, com coragem e confiança, viram vencedores, o que vemos no Coringa é um cruel processo de marginalização de um indivíduo perdido na sua patologia. Um processo causado pela indiferença institucional, que olha mais para a doença do que para o doente – um pobre-diabo anônimo que nem sequer pode ser um palhaço – um joker.
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Sei “ler” o baralho, esse espelho do nosso mundo social com cartas pretas (copas simbolizam o clero; paus, o povo; espadas remetem aos nobres e o vermelho, ao ouro dos comerciantes). Já as figuras eram nobres (rei, rainha, valete) e os números, os comuns. No meio dessa gramática rígida, porém, havia uma carta singular porque ela combinava com todas as outras: o coringa. Esse “joker”, ou gozador, que foi introduzido no baralho nos Estados Unidos.
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O joker, como revela o filme, deveria, mas não consegue entrar em nenhum naipe ou jogo. Ele é marcado pela rejeição institucional e pela infelicidade de uma condição psicológica que o faz rir desbragadamente num sistema no qual todos devem ser sérios.
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Alguém poderia escrever um livro sobre o riso e o sério; sobre a gargalhada que joga tudo para cima e o discurso burguês salvacionista; sobre o riso desbragado e o grave discursar, sobre a ordem da palavra (ou a palavra de ordem) e a desordem satírica do riso que denota zombaria, baderna, malandragem e descaso.
Eu não conheço muitos mitos da origem do riso, mas Mikhail Bakhtin, no livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais, ensina: “No começo do mundo, os homens eram sérios. Mas o diabo enviou o riso para o mundo e apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira”.
O que remete à tragédia de um mundo consumista no qual cabe a marginalidade, mas não o gargalhar do Coringa, que promove mal-estar em meio a uma necessária impessoalidade. A compulsão ao riso destoa do foco, do projeto que todos devem ter. Afinal, só os ricos riem à toa e, como disse Henri Bergson, não rimos de tudo a todo momento. O riso é um sinal de indiferença e distanciamento. Matar com um riso aberto não seria o estigma inconsciente desse Coringa, cujo riso descontrolado o impede de entrar do mundo?
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No filme, o riso descontrolado é o sintoma de uma sociedade marcada por ganhadores ou perdedores, os que não sabem a gramática do riso e da seriedade. O mundo pós-moderno, mas ainda burguês, exige seriedade tanto à direta (com seus contratos de expropriação) quanto à esquerda (com suas sagradas e utópicas palavras de ordem). No Coringa, o riso leva à marginalidade e se transforma num poder dos fracos. O riso do Coringa produz o seu esmagamento, mas sugere a legitimação da violência transformadora como revanche.
Em suma, esse Coringa pode ser lido como um avatar de um mundo certo de suas incertezas. Pelo menos, foi essa a emoção que o filme em mim despertou.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 29/1/2020