A economia do isolamento imposta pelo coronavírus não é apenas recessiva: ela também transforma, a jato, a maneira como as empresas se organizam e modelam seus negócios. Se o consumidor e a mão de obra não colocam a cara na rua, as companhias correm para organizar a maior experiência coletiva de home office já vista, aderem ao delivery e à virtualização de serviços e repensam fornecedores. A transição movimenta o mercado de tecnologia de informação e de consultorias, que enxergam na crise um potencial legado de mais eficiência e maior digitalização para os negócios que sobreviverem a ela.
Epidemias sempre aceleram transformações econômicas. Atribui-se à carnificina da Peste Negra o aumento no poder de barganha dos vassalos que derrubaria o feudalismo. Artigo recente da Harvard Business Review lembrou que, em 2003, foi a Sars que tornou a China um dos líderes globais do comércio eletrônico, propiciando a ascensão do Alibaba. Ainda é cedo para estimar heranças desse porte no caso do coronavírus, mas ele já é incontornável para qualquer setor, da multinacional à escola.
— Ainda é cedo para saber qual vai ser o impacto disso, mas, até pela severidade dessa crise humanitária, acredito que haverá uma mudança fundamental nos processos das empresas e na forma de a gente consumir, trabalhar e se relacionar. Aquilo que antes não dava para fazer, quando precisou, foi feito — afirma Reinaldo Fiorini, sócio-diretor da Mckinsey.
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Uma das primeiras decisões tomadas foi a migração para o home office. A pandemia, de alguma forma, obrigou as empresas a realizarem um dos desejos de parte relevante dos funcionários. Pesquisa da Alelo feita pelo Instituto Ipsos sobre hábitos de trabalho, divulgada em janeiro, mostrou que 49% deles gostariam de trabalhar fora do escritório.
Nesse sentido, a quarentena forçada funcionará como uma espécie de “test drive coletivo”. Depois dele, muita gente não vai querer voltar para os escritórios, acredita Adriano Gaudêncio, diretor de arquitetura e soluções da Cisco Brasil, que fornece ferramentas de produtividade:
— É bom para o funcionário, que pode gerenciar melhor o seu tempo e gastar menos tempo no deslocamento. Para as empresas, diminui a demanda por espaços de trabalho.
Ensino: caminho sem volta
O imperativo do trabalho remoto pegou as empresas desprevenidas. Como poucas tinham laptops para toda a equipe, a locação de máquinas disparou. Na Positivo As a Service, unidade do grupo Positivo que aluga notebooks e outros equipamentos, a demanda foi seis vezes maior na semana passada, na comparação com a semana anterior. Há empresas orçando o aluguel de até mil máquinas.
Na rede da Embratel, que comercializa o ecossistema de colaboração remota Conecta Home Office, o aumento do tráfego de dados por rede fixa já aumentou 10%, e na móvel, 20%. As pessoas também passaram a falar mais ao telefone: o tráfego de voz avançou em 10%.
— É o momento de a indústria de tecnologia mostrar quão importante e crítica ela é para as empresas — comenta Marcello Miguel, diretor executivo de Marketing e Negócios da Embratel.
Para a consultoria eMarketer, o apelo por interações remotas durante a pandemia “sublinha a necessidade da tecnologia do 5G, potencialmente acelerando sua adoção a longo prazo”, previu em relatório.
Com 850 milhões de estudantes fora da sala de aula em todo o mundo por causa do vírus, escolas e universidades tiveram poucos dias para se reinventar. No Rio, o grupo Raiz, de escolas como QI e Ao Cubo, transformou em poucos dias seu aplicativo de apoio em uma central de aulas on-line ao vivo para dois mil alunos do vestibular e de cursos preparatórios. Antes, só aulas de reforço eram filmadas. Com a pandemia, em parceria com a empresa de ensino on-line ProEnem, o Raiz dobrou para quatro o número de estúdios usados e contratou freelancers para a equipe.
— O feedback dos alunos tem mostrado que esse é um caminho sem volta. Sou careta sobre a importância da aula presencial, mas, daqui para frente, vamos ter muito mais aulas on-line, com coronavírus ou sem coronavírus — diz o diretor-geral André Gusman.
A Somos Educação, do grupo Cogna (ex-Kroton) e que fornece ferramentas digitais de apoio ao ensino para 4.100 escolas, começou a se preparar quando a situação se agravou na Itália.
— Foi um susto. Fizemos um planejamento para três semanas, mas tivemos que fazer tudo em uma — conta Mario Ghio, diretor presidente da Somos.
Além de adaptar as ferramentas para o ensino à distância, foi preciso desenvolver toda uma metodologia para a educação infantil e o ensino fundamental 1. A Somos tem uma fila de mais de mil novas escolas que procuraram pelos serviços, e também está em contato com secretarias estaduais e municipais de Educação. Para Ghio, a crise será um catalisador de decisões que há muito vêm sendo postergadas:
— As secretarias estaduais estão reconhecendo que é possível aprender fora da escola presencial. É um debate que se arrasta há anos. Desde 1996, a Lei de Diretrizes e Bases prevê ensino à distância no Brasil, e só agora os estados vão começar a regulamentar.
Fora do setor educacional, além do home office, as companhias estão tendo que buscar às pressas um caminho para que os funcionários acessem esses sistemas de casa. Uma solução é a rede privada virtual, conhecida pela sigla em inglês VPN, que permite o acesso seguro à rede corporativa fechada por meio da internet doméstica.
Rotinas repensadas
Estudo da fornecedora de VPN Atlas mostra que, na semana terminada em 15 de março, o uso de VPNs mais que dobrou (alta de 112%) na Itália, epicentro da epidemia do coronavírus. No Brasil, o aumento da procura por soluções de VPNs e virtualização (que deixa o funcionário acessar remotamente sua própria máquina no escritório) cresceu 60% na Citrix, americana que oferece esse serviço.
— Infelizmente, essa não vai ser uma corrida de cem metros rasos, mas uma maratona. Em um primeiro momento, as empresas buscaram um tapa-buraco, mas os funcionários começaram a reclamar. Então, estão indo agora para um próximo nível — explica Luis Banhara, diretor-geral da Citrix.
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Segundo Banhara, a adoção generalizada do home office esbarra na questão cultural, já que empregados e empresas da maioria dos setores não estão habituados a colaborar virtualmente, e a legislação trabalhista ainda é pouco adaptada à modalidade.
— Mas essa crise está fazendo com que as empresas repensem a rotina de reuniões, avaliando a efetividade desses encontros e buscando ser mais focadas. Os executivos também já estão trocando a ligação pela chamada de vídeo, que é mais efetiva — afirma André Chaves, sócio da Bain & Company.
O caos nas cadeias de suprimentos por causa do coronavírus também fará as companhias repensarem seus fornecedores, prevê Anselmo Bonservizzi, sócio da área de risco da Deloitte. O movimento já vinha acontecendo, em escala reduzida, com a guerra comercial entre EUA e China. Depois de a pandemia ter paralisado o setor industrial chinês, isso deve se acelerar, diz ele:
— As empresas vão se questionar sobre a dependência de um só fornecedor no continente asiático. Ainda é prematuro para saber qual resposta será essa, mas a questão vai estar na mesa.
Por enquanto, as empresas se viram como podem. Como não encontra mais no mercado válvulas para seus frascos, importadas da China, a fabricante do álcool em gel Hi Clean planeja simplificar sua embalagem.
— Se não tiver válvula, vamos colocar uma tampa. Estamos mais preocupados em fornecer o produto do que manter as características da marca — contou a gerente de Marketing da Hi Clean, Elaine Santana.
Fonte: “O Globo”