Eleição rima com peregrinação, uma palavra espessa que remete a andar por terras distantes virando um estrangeiro; um ser isolado e relativamente fora do mundo. Não é por acaso que no momento eleitoral existam “campanhas”. Palavra que fala de um tempo imprevisto. Uma ocasião situada entre a partida e chegada de um barco de pesca e dos desempenhos de times e esportistas. Bem como de campanhas militares nas quais o general fala por meio dos soldados.
As campanhas são dos “políticos” que não dizem que vão nos assaltar moral ou financeiramente, mas prometem tudo o que, depois, não fazem ou descobrem que não podem fazer. Em campanha, porém, eles surgem como pessoas. Como tal, promovem lampejos de si mesmos e inexoravelmente exibem suas personalidades, mesmo quando ele (ou ela) nada têm para dizer ou são simplesmente bonecos que reproduzem os gestos e a voz dos seus ventríloquos. Por isso, as campanhas eleitorais revelam um lado surpreendente dos políticos. Refiro-me à sua peregrina humanidade que, no Brasil, manifesta-se pelas visitas a locais e pessoas subordinadas onde, sorrindo e fingindo naturalidade, esses romeiros do voto apertam mãos, beijam crianças, abraçam mulheres desdentadas (eles devem ser assexuados e puros), tomam cafezinho ou comem pastéis. Em outras palavras, nas campanhas, os “políticos”, sobretudo aqueles cevados no grosso caldo das aristocracias governamentais, transformam-se em peregrinos e deixam os palácios onde residem para tomar contato com o que chamam de “povo”. No caso, os “pobres” que seus “cabos eleitorais” (eis um papel típico das campanhas militares) aparelham para recebê-los como salvadores públicos ou santos. Hoje, o próprio presidente é o maior cabo eleitoral do País e toda a máquina do Estado volta-se para vencer uma campanha (ou guerra) mostrando claramente como ainda vivemos, na política, a era do vencer a qualquer preço. Afinal, os fins justificam os meios.
Esse estado de peregrinação é parte do estilo político nacional no qual pessoas, mais do que ideias e valores, são discutidas. Aqui se diz: “Eu sou fulano, candidato do rei; ou do sicrano.” Temos linhagens de famosos apoiando pessoalmente os seus favoritos de modo que, no fim, tudo fica na mesma. Achar, no poder, um lugar enviesado não é fácil. Equivale a ser um professor que, de tempos em tempos, prega a ignorância; ou a um presidente que, mesmo tendo o controle do sistema como um todo, define-se como marginal junto aos seus coadjuvantes mais importantes: a imprensa, a indústria, os bancos, e os próprios políticos. Manter-se no fio da navalha sendo a um só tempo pobre e poderoso, situando-se dentro e fora do mundo, como faz Lula, é raríssimo. Requer estar no topo da hierarquia (escondendo o seu poder de ventríloquo), sem deixar de comunicar ao grosso da sociedade a sua condição de peregrino.
Penso que isso explica a maciça transferência de votos para o candidato escolhido. Primeiro porque nós, humanos, somos criaturas da transferência e da projeção. Passamos todo o tempo pondo no outro o que somos e o que existe no fundo dos nossos corações; depois, porque numa sociedade hierarquizada como a nossa, todo mundo adere ao topo; finalmente, porque quanto mais estranho e peregrino for o candidato, melhor para que o ventríloquo possa por ele falar. Um candidato com história e experiência eleitoral não é um bom médium para nenhum espírito, sobretudo para o Grande Irmão que “cuida” do povo brasileiro. Já um candidato sem história e, mais que isso, sendo mulher e marginal ao poder supremo do sistema brasileiro – o de presidente da República – tem tudo para ser a tela capaz de receber todas as imagens projetadas pelo mestre. Neste sentido, o único modo de competir com o ventriloquismo seria tentar desconstruir o ato.
No caso, desconstruir o Grande Irmão, o que, sejamos sinceros, só chegou onde está porque no nosso liberalismo há de tudo, menos o ator de sua necessária contracena: a oposição! Aquela contrariedade dramática e fulanizada (como disse uma vez FHC), que liga a experiência diária a propostas e projetos, tal como aconteceu com o Plano Real. Opor-se clara, honesta e competentemente é o único amuleto capaz de salvar o Brasil de si mesmo: das suas tentações aristocráticas e autoritárias que, em nome dos oprimidos têm todas as certezas e sabem todas as respostas num mundo cada vez mais ávido da humildade das incertezas e do incômodo das boas perguntas.
Pena que uma oposição desmantelada recuse falar da estabilidade monetária, do Bolsa-Escola (mãe do Bolsa-Família), da ênfase na eficiência do gerenciamento público e das privatizações – suas heranças malditas – lidas pelo povo como façanhas lulistas. Hoje, só nos resta pensar no que poderá ocorrer com um ventríloquo tão bom quanto Gabbo, o Grande. Aquele personagem do escritor Ben Hecht, cujo boneco acaba ganhando vida própria e destruindo o seu criador. Mas isso, como dizia Kipling, é uma outra história. Agora, amigos, eu – que, como os políticos e os ricos, também não sou de ferro – vou tomar um uísque com soda…
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 08/09/10
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