Nesta semana, tivemos a aprovação da PEC do Orçamento de Guerra, que permite ao BC comprar títulos públicos. O arsenal para o combate dos efeitos da pandemia na estabilidade financeira foi bastante ampliado.
A partir de agora, será possível a implementação do chamado “quantitative easing” (QE) ou afrouxamento monetário, instrumento utilizado por bancos centrais de EUA, Europa e Japão desde 2007, quando estourou a crise financeira.
O QE é uma política monetária não convencional, acionada quando a taxa de juros básica da economia está perto de zero ou negativa, não sendo mais possível baixá-la. Ao comprar títulos, os BCs criam uma quantidade de dinheiro, chamada de reservas, que são depositadas nos bancos, aumentando a liquidez financeira e turbinando a capacidade de empréstimos.
No entanto, o QE é também uma forma de financiamento não explícito do gasto público. Ao ter um comprador cativo para seus títulos, a política fiscal pode ser usada sem limites, já que a capacidade de o BC criar reservas é infinita. O Tesouro não precisa mais se preocupar em não encontrar demanda ou ter de incorrer em um custo de financiamento muito elevado.
Em termos práticos, o QE abre possibilidade de monetizar o déficit fiscal de forma permanente e, consequentemente, traz consigo o risco inflacionário.
Parece impensável falar em inflação, neste momento, diante de uma recessão sem precedentes, commodities despencando e expectativas de IPCA no nível mais baixo da história. O risco inflacionário não está no curto prazo, mas não por isso pode ser ocultado. O Brasil é o país que contempla o presente, culpa o passado e ignora o futuro.
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Em algum momento, talvez um ou dois anos, a pandemia será controlada, o mundo voltará a crescer, a demanda doméstica se estabilizará, e como estará nossa política fiscal? Estaremos com o arcabouço fiscal intacto? Teremos condições de retomar as reformas para controlar os gastos obrigatórios?
Atualmente, as suspeitas são que o teto de gastos será abandonado e estaremos sem nenhuma regra fiscal crível. Os sinais do Congresso e do próprio Executivo são negativos. Como se não bastasse a crise de saúde, produzimos uma crise política/institucional, que agrava a econômica. Esse foi, aliás, um dos fatores citados pela Fitch ao revisar a perspectiva de nosso rating de estável para negativo.
Diante da perda de popularidade do presidente e da ameaça de impedimento, ideias populistas começam a pipocar, como colocar todos os trabalhadores informais na rede de assistência social, em vez de incentivar a sua formalização.
Outras envolvem recriação de ministérios, volta dos subsídios para o setor elétrico, capitalização de empresas como a Embraer e uso de fundos garantidos pelo Tesouro para turbinar o crédito via bancos públicos.
Seriam essas medidas temporárias? Podem ser, mas o risco é grande. A extensão dos programas de manutenção do emprego e coronavoucher já conta com o aval do governo.
Nesta semana, deputados da base do governo permitiram reajuste no funcionalismo dos estados e municípios. O Congresso, há poucas semanas, voltou a aprovar as mudanças no BPC, medida não relacionada à crise de saúde, de efeitos permanentes e ainda não vetada.
A sustentabilidade da dívida está em xeque, assim como o controle da inflação. O QE é mais um fator de incerteza ao relaxar a restrição orçamentária de forma permanente.
Para piorar, nem sequer temos um BC independente. Por sermos uma economia aberta, corremos o risco de uma saída forte de recursos e de uma desvalorização expressiva do real.
Mesmo em países com histórico fiscal austero, como a Alemanha, a preocupação com a consistência das políticas não é descuidada. Não à toa nesta semana a Corte Constitucional alemã decidiu que o Banco Central Europeu tem de demonstrar que as compras de títulos públicos dos últimos anos estavam de acordo com o equilíbrio da política econômica da região.
A confiança de que o Brasil voltará para a rota da responsabilidade fiscal é crucial para que o mercado aceite carregar títulos longos a taxas que não coloquem nossa dívida em trajetória explosiva.
O BC não deve ser comprador de última instância dos títulos públicos num governo sem credibilidade, sob o risco de perdermos o controle da inflação.
Estamos na prática recriando a conta-movimento, que teve seu auge nos anos 1970 e permitia ao Banco do Brasil emitir moeda toda vez que o governo central assim determinasse. Há muitas dúvidas sobre a possibilidade de a nova PEC vir a ser de fato positiva para a estabilidade financeira.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 7/5/2020