Temos vivenciado, nestes quase dois meses de confinamento, uma participação crescente de ativistas nas redes sociais. Inúmeras “lives” são organizadas sobre os temas mais variados, com interessantes discussões sobre os temas mais variados, de vinhos a meditação, passando até por um dissimulado lançamento de pré-candidaturas de vereadores à disputa eleitoral deste ano.
Em meio a esse intenso e movimentado mundo virtual, internautas se articulam na defesa de ideias e propostas, algumas inclusive postadas nas redes por autoridades públicas. Outras, da lavra de grupos rivais, compostos por humanos ou robôs, repetem à exaustão mantras que, em vez de debater o tema em pauta, procuram desqualificar o adversário ou divulgar notícias falsas.
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O curioso é que, neste contexto, as discussões sobre políticas públicas que demandariam certo rigor técnico são assaltadas por frases ligadas a crenças individuais, quase religiosas. “Eu acredito no isolamento” ou “eu creio no poder da cloroquina” aparecem junto com algumas poucas postagens que tentam, em terreno hostil, discutir alternativas de ação, com base em dados científicos, ou repercutir estudos de pesquisadores ligados a cada área.
Viramos todos, da noite para o dia, epidemiologistas amadores, independentemente da área em que nos formamos ou atuamos. É nesse sentido que ecoa a frase sarcástica, pronunciada no mesmo dia em que alcançamos a triste marca de mais de mil mortes por dia e dois ministros de saúde depois, de que a direita tomaria cloroquina e a esquerda, tubaína. Sem mais comentários, afinal, como já afirmei nesta coluna, não há um coronavírus de direita e outro de esquerda. Mas o que me chama atenção é que o mesmo se passa com outras políticas públicas.
Em educação, por exemplo, ainda nos baseamos mais em crenças do que em pesquisa séria sobre o que funciona em sala de aula ou como o cérebro de crianças e adolescentes aprende. Aqui também pessoas bem-intencionadas dizem “foi assim que aprendi na escola e funcionou”, embora não exista qualquer evidência a respeito. Ainda outras celebram a adoção, por escolas, de práticas que soam poéticas, mas que são desprovidas de eficácia, acarretando resultados comprovadamente ruins há mais de 30 anos.
É mais do que hora de mudar o debate e os embates em torno da gestão pública. Há espaços distintos para a ciência e para a religião —o terreno das crenças, como bem mostra o físico Marcelo Gleiser, detentor do prestigioso prêmio Templeton, em seu livro “A Ilha do Conhecimento”. Se há que romper paradigmas consolidados, vamos utilizar o método científico para fazê-lo.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 22/5/2020