Nos Estados Unidos, correntes minoritárias do Black Lives Matter deploram a vasta adesão de brancos aos protestos antirracistas, alegando que eles estariam se divertindo com uma nova moda. No Brasil, setores do movimento negro acusam o ex-quase-ministro Carlos Decotelli de ser algo como um “negro falso”, por não seguir a cartilha política e cultural que eles defendem. Lá, cor define ideologia; aqui, ideologia define cor.
A acusação parte de várias vozes, mas é melhor ilustrada por um artigo de Dodô Azevedo (Folha, 1° de julho). Decotelli seria um “negro conveniente”, um “desertor”. Mas como identificar esse personagem abominável?
Primeiro, por desvios de caráter derivados do desejo de assimilação. “Esses negros começam a agir como se desfrutassem dos mesmos privilégios que os brancos” e, por isso, “roubam, matam, mentem”. Ficamos sabendo, assim, que os indivíduos desapareceram, convertendo-se em meras representações raciais. Se Decotelli fosse um “negro inconveniente”, seria necessariamente reto, justo e puro. Tudo, inclusive o caráter pessoal, depende da ideologia.
Segundo, pela fé religiosa. Decotteli, “cristão batista, é um negacionista do sistema de crenças de suas avós e bisavós e tetravós”. A liberdade de escolher uma fé está aberta a todos, menos aos negros. Isso porque “mentira e injustiça não seriam toleradas” nas religiões de matriz africana. François Duvalier, sanguinário ditador do Haiti, fez do vodu o pilar de seu poder, em nome da “autenticidade” africana. Martin Luther King era pastor batista —e, portanto, segundo Dodô, um monstro potencial.
Terceiro, pela carreira. Decotelli teria escolhido a carreira militar “para tentar não ser negro”. Se, como Dodô, tivesse optado pelo jornalismo, o cinema, a história e a filosofia, talvez se aproximasse do pódio de “negro legítimo”. Nessa linha, como fica o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata? E o jornalista, filho de escritor e irmão de músico Sérgio Camargo, presidente ultrabolsonarista da Fundação Palmares?
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“Um negro que migra para um país assimilacionista esquece a que matriz pertence”, escreve Dodô. O atacante Eusébio, nascido na Moçambique colonial, artilheiro de Portugal na Copa de 1966, identificava-se como português. O escritor moçambicano Mia Couto não o reprovou. “Se existem brancos que são africanos, se existem negros que são americanos, por que os pretos africanos não podem ser europeus?”
E segue: negros de origem africana, como Eusébio, terão filhos e netos nascidos na Europa e “não podem cair na armadilha de reivindicar um gueto, uma cidadania de segunda classe”. Mas o “gueto”, a “matriz”, é exatamente o que exige Dodô, sob pena de excomunhão eterna.
“Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco.” (William Blake). A obsessão essencialista pela tradição é o traço crucial que aproxima Dodô de Damares Alves. A ministra, pastora evangélica, também teme o “assimilacionismo”, o esquecimento das “raízes”, das “crenças ancestrais”. Os dois, donos da régua do Bem e do Mal, falam em nome de cruzadas purificadoras simétricas.
Ainda bem que brancos engajaram-se nos protestos antirracistas nos EUA. O racismo degrada-nos a todos, fazendo-nos ver raças onde existem indivíduos.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 4/7/2020