Hélio Schwartsman defendeu o consequencialismo ético em sua coluna na Folha. Segundo ele, “é o que de mais próximo temos de uma teoria ética completa e universalizável”. Tendo a concordar. Mas vamos reconhecer que o diabo mora nesse “mais próximo”. Ou seja: não é, não chega lá.
O consequencialismo —em quaisquer de suas versões, como o utilitarismo— não é uma ética completa e universalizável. Ele enfrenta uma série de dificuldades. Por exemplo: como comparar consequências heterogêneas entre si? Quando se trata de uma escolha entre uma ou muitas vidas, a decisão é simples: duas grandezas de uma mesma variável. Mas e se além de anos de vida salvos tivermos que levar em conta bem-estar, felicidade, saúde? Há ainda a dificuldade de delimitar o prazo da comparação. Cada ação leva a consequências que se desenrolam pela eternidade; quão longe devemos ir para comparar alternativas de ação?
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O problema mais profundo, que o próprio Schwartsman aponta, contudo, é a desconexão com certas intuições morais muito profundas: o utilitarismo exige que se mate um homem inocente se isso resultar em um número maior de vidas salvas. Via de regra, é uma ética que exige ignorar valores não-quantificáveis como beleza estética, honestidade, bondade de caráter e profundidade intelectual como se fossem resíduos pré-racionais. Mas se o próprio utilitarismo não é tão racional assim…
A corrente que em geral se apresenta como alternativa ao consequencialismo —as éticas deontológicas ou do dever— também leva a absurdos incompatíveis com a vida normal e a boa condução da sociedade. Não mentir, não matar, não roubar. Para todos encontraremos importantes exceções. Mas se essas morais filosóficas não atendem aos requisitos de uma ética racional, serem completas e universalizáveis, válidas para todos os casos, com base no que exigem que mudemos nossos juízos e nossa conduta?
Não que uma construção intelectual seja capaz de efetuar essa mudança. Nosso senso moral independe de elucubrações filosóficas, e elas têm uma capacidade muito limitada de alterá-lo. Isso tampouco quer dizer que nossas intuições sejam guias infalíveis da verdade eterna; são elas próprias uma mistura heterogênea e por vezes contraditória de biologia, cultura e elementos pessoais. Nem que devam sempre ser seguidas. Por que não violar a própria consciência em certos casos?
Precisamos acreditar que nosso senso ético tem alguma objetividade, que ele é mais do que apenas expressão de certos condicionantes psicológicos, que ele é verdadeiro ou justo no duro, alicerçado em algo que transcende nossas meras preferências pessoais —que haja Deus ou uma Razão Universal chancelando nossos valores. A justiça precisa ser algo mais elementar, e mais importante, do que um gosto pessoal. Sem isso, a moral perde sua força persuasiva. A ordem social provavelmente colapsa. Mas essa importância psicológica e social em nada garante que nossa pretensão tenha alguma base.
Se lembrarmos que o ser humano é um animal, fruto da seleção natural, fica mais fácil aceitar: seria mesmo surpreendente se um conjunto de princípios abstratos ou mandamentos “divinos” desse conta de regrar nossa vida complicada e contraditória de bicho.
Nosso uso da razão é limitado e nem sempre bem-vindo. Abrir mão dela, contudo, seria abraçar o que há de mais destrutivo e desonesto em nós. Estamos condenados a buscar o que não existe, e tanto acreditar que se encontrou quanto desistir da busca são jeitos de se perder.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 14/7/2020