Carl Sagan não acredita em milagres, a julgar pelo relato que se segue: “Em 1858, uma aparição da Virgem Maria foi relatada em Lourdes, França, e desde então centenas de milhões de pessoas desenganadas têm ido a Lourdes na esperança de serem curadas. A Igreja rejeitou a autenticidade de um grande número de pretensas curas milagrosas, mas aceitou apenas 65, em quase um século e meio. A taxa de regressão espontânea em todos os cânceres é estimada entre 1 em 10 mil e 1 em 100 mil. Se apenas 5% dos que vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus cânceres, deveria haver entre 50 e 500 curas milagrosas só de câncer. Como apenas 3 dos 65 casos autenticados são de câncer, a taxa de regressão espontânea em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente ficado em casa.”
É fácil ver onde essa historinha pode nos levar, e não se trata de denunciar a subnotificação no departamento de milagres do Vaticano, mas de refletir sobre a imagem grotesca do presidente erguendo uma embalagem de cloroquina diante de uma multidão de apoiadores extasiados, como um possível prelúdio ao anúncio de uma cura miraculosa.
O milagre aqui será de marketing: a construção de uma narrativa de sacrifício e redenção de um visionário. A probabilidade de o presidente atravessar a doença sem sintomas é bem grande, e esta é sua aposta política, suas chances são boas.
A interação entre ciência e poder é um perigo, pois os dois lados costumam se estragar: cientistas ficam mais cínicos, e os políticos, mais malandros. E não é de hoje: há muitos precedentes, talvez o mais interessante seja o da “revolta da vacina” em 1904.
Faz muito tempo, mas o tema sanitário continua atual.
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Em 1904, Lauro Sodré, um tenente-coronel jacobino, florianista, maçom e senador pelo RJ, planejava um golpe de Estado a ser deflagrado em 15/11, quando as tropas estariam mobilizadas na capital para o desfile.
Ele achava que a “República do Café com Leite” havia prostituído os ideais originais da Proclamação, mas seus planos foram sendo atropelados pela epidemia de varíola no Rio de Janeiro e, sobretudo, pela publicação da regulamentação para a vacinação obrigatória, um exemplo de “insensibilidade tecnocrática” que, para alguns, criava uma “ditadura sanitária”.
Tomando carona nessa contrariedade, Sodré se torna presidente de uma Liga Contra a Vacinação Obrigatória, fundada em 5/11, que se põe a empreender uma campanha violentíssima que enfatizava “a invasão da privacidade dos lares”, a truculência dos agentes de saúde, higienizando tudo, entrando porta adentro de casas de família, brutalizando esposas e filhas, que precisavam disponibilizar braços, colos e mesmo coxas para a vacina.
Esse moralismo de ocasião foi imensamente eficaz para mobilizar a população. O Rio de Janeiro se viu tomado por tumultos de rua, o desfile militar de 15/11 foi suspenso, mas as tropas vieram para a capital para restaurar a ordem, mirando nos golpistas, que perderam o controle das manifestações. A cidade viveu o caos até a decretação do estado de sítio em 16/11.
O episódio da “revolta da vacina”, como ficou conhecido, teria sido, conforme historiadores, menos um assunto sanitário que uma “revolta contra a História”, do lado certo da qual estava o jovem sanitarista Oswaldo Cruz, dirigindo pessoalmente as campanhas de vacinação.
Passado o tumulto, Oswaldo Cruz foi consagrado: a fundação, em Manguinhos, que ganhou seu nome em 1909 se tornou uma presença institucional essencial para estabelecer a autoridade da ciência em assuntos sanitários.
A ciência pode ser inconveniente para os políticos, e para este presidente em particular, mas o assunto é complexo. Não esquecer que não foi Bolsonaro quem inventou essa conversa de que a ciência é apenas uma narrativa.
Fonte: “O Globo”, 26/7/2020