Tem sido frequente, hoje em dia, em muitos países, incluir em currículos nacionais o desenvolvimento de habilidades em vez de uma lista daquelas a serem ensinadas. Isso permite maior flexibilidade no trabalho do professor e uma visão mais contemporânea do processo de ensino.
Há, porém, um risco associado a essa abordagem: alunos que vêm de famílias em situação de vulnerabilidade costumam ter um repertório cultural mais limitado, o que torna desafiadora a tarefa de ler e entender textos mais complexos. Se traduzirmos a competência de ler e interpretar apenas como um conjunto de técnicas, corremos o risco de diagnosticar equivocadamente o problema de aprendizagem do aluno como uma falha na habilidade leitora.
Steven Pinker, linguista canadense, costuma dizer que, como o aprendizado inicial de leitura envolve sobretudo decodificação, ou seja, associar letras a sons, o repertório cultural da família tem impacto menor no processo de alfabetização. Quando, porém, a criança avança nas séries escolares seguintes, a leitura de textos um pouco mais avançados passa a demandar referências históricas ou científicas que ela pode não ter adquirido fora da escola.
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Por isso é tão importante que se ensinem na escola tópicos de história, ciências e geografia associados aos textos colocados para sua leitura, mesmo nos primeiros anos do ensino fundamental. Caso contrário, estudantes vindos de meios mais vulneráveis terão poucas chances de remover os imensos obstáculos para sua evolução na aprendizagem e na prática leitora.
No livro recentemente publicado “The Knowledge Gap”, a historiadora da educação Natalie Wexler discute as desigualdades educacionais existentes nos EUA e mostra que elas crescem frente à inadequação do processo de ensino até pouco utilizado em boa parte dos sistemas escolares do país. Sem uma ação sistemática de ensino para a ampliação do repertório cultural dos alunos, maior proficiência em interpretação de textos não será alcançada e a desigualdade prosseguirá sendo uma característica definidora da educação americana.
No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular recentemente aprovada e os currículos estaduais e municipais para o ensino fundamental já contemplaram a integração de habilidades com conhecimentos, valorizando saberes de diferentes disciplinas. Que isso se mantenha também nos de ensino médio, como no de São Paulo, aprovado na última semana, e que, na volta às aulas, possamos começar a diminuir a nossa grande desigualdade educacional, tanto mitigando os danos resultantes da pandemia como ensinando de forma bem mais efetiva.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 7/8/2020